quarta-feira, 24 de maio de 2023

A garota ideal (Lars and the real girl)


O grande triunfo do filme A garota ideal consiste em apresentar ao público um dado vértice de compreensão do psíquico, ainda que ele se manifeste de uma forma estranha, inusual. Uma querida professora, após assistir ao filme, fez alusão ao comportamento comum das crianças quanto ao brincar. Decerto, não haveria espanto se, ao invés de Lars, um homem adulto, estivesse uma criança a fantasiar fortemente com sua boneca, nas conhecidas brincadeiras onde o ‘faz de conta’ toma ares de real. O sentido das brincadeiras infantis e o sentido de seu aparecimento como sintoma em Lars, como mostra o filme, sugere que tais eventos merecem ser tratados com a devida seriedade pela cultura. Sobretudo, pela carga emocional e pelos processos psíquicos que eles veiculam. Sem falar da já marcante tendência, na cultura contemporânea, dos relacionamentos virtuais e, mais recentemente, os relacionamentos com chatbots e robôs humanoides.

O início do filme mostra Lars escondendo-se do contato humano, fugindo às investidas de familiares, de pessoas do trabalho, da igreja. Em particular de sua cunhada que ‘quer abraçar o mundo’. O abraço, o ‘toque humano’ lhe dói concretamente no corpo. Ele busca passar desapercebido até que, no contexto da gravidez da cunhada, ele ‘encomenda uma noiva’ – para o restante de sua comunidade, uma boneca inflável erótica – ‘com a qual passa a se apresentar’ a todos. ‘Com a qual passa a se apresentar’, porque Bianca se mostra bem mais do que somente uma companhia. Bianca é tímida, precisa de ajuda e de cuidados para estar em sociedade, precisa de tratamento, compartilha do mesmo destino trágico de Lars, o qual perdera os pais na ocasião de seu nascimento. Bianca parece ser a maneira encontrada por Lars de comunicar aos outros sua condição psíquica e emocional. E assim receber dos outros o suporte emocional de que necessita. Nas palavras dele mesmo: ‘Bianca veio assim para ajudar as pessoas’.

Mas Bianca também é um outro, com características peculiares providas de sentido. É um outro do sexo feminino e responde às demandas sensuais de Lars e a pressão vivida por uma namorada. Em oposição a Margoo e às demais mulheres da comunidade, Bianca não precisa ser conquistada. Lars não precisa se preocupar com a rivalidade dos demais homens e nem precisa vivenciar demasiadamente a pressão de cuidar de sua relação e mantê-la (pelo menos, não de pornto). Afinal, em síntese e como aspecto mais essencial, tal qual as flores artificiais, Bianca ‘pode durar para sempre’. Ao escolher Bianca, Lars comunica sua ‘saída’ para evitar os conflitos edipianos e a dor da perda.

Não à toa, o adoecimento eclode no contexto da gestação da cunhada. A óbvia associação com a história de Lars – a perda da mãe (e do pai, emocionalmente impedido de se conectar ao filho desde então), quando do parto dele – sugere a dimensão da mobilização emocional interna vivida por Lars. É provável que, impelido por suas pulsões sexuais, mas também pela necessidade de buscar um outro com quem pudesse sanar as profundas feridas mentais, reabertas nesse contexto, Lars tenha ‘criado’ Bianca. Um outro, por essência, seguro, garantido, incapaz de abandoná-lo e com o qual ele poderia se apresentar aos demais.  

E então ele encontra uma terapeuta sensível, capaz de perceber o sintoma – Bianca - como uma forma de apresentação, de fato, a ser comunicada. Não apenas um sintoma bizarro, estranho, que deveria ser eliminado. Mas como uma produção psicológica e, como tal, provida de sentido e significado. Que estaria ali, presente, enquanto Lars precisasse dessa produção. A terapeuta ‘aceita e acolhe’ Bianca, por saber que através dela Lars comunica sua própria doença, seu trauma e sua necessidade de ser ouvido e compreendido. Ela entende o sintoma tal como os adultos deveriam entender as brincadeiras infantis: como uma realidade psíquica digna da mais séria consideração. Essa é a condição fundamental pela qual a relação terapêutica se vai desenvolver. A ‘esquisitice’ de Lars passa a ter um lugar onde ela pode ser vivida, comunicada e pensada. Naturalmente, esse processo vai favorecendo que, aos poucos, os conteúdos psíquicos de Lars se passem a apresentar de outras formas, para além de Bianca, a qual vai ficando cada vez mais ‘de fora’ da consulta. Ele vai desvelando seus incômodos com o abraço, com o toque, seu medo frente à gestação da cunhada. Ele vai se deixando tocar e paulatinamente construindo uma outra relação com o toque, uma relação inclusive de alívio e satisfação.

Nada disso pode ser experimentado sem uma significativa dose de medo e tentativa de restaurar um estado anterior das coisas. Lars vai percebendo que não precisa mais tanto de Bianca e se vai instaurando a temida realidade da separação e da perda. Ele anuncia: ‘a pedi em casamento, mas ela não aceitou’. Nesse mesmo dia, se recusa a entrar no consultório, ‘pois Bianca está péssima e não pode deixá-la’. Lars vai experimentando, também no seu dia-dia, essa separação, ao permitir, não sem dor e sem protestos, a inserção de outras pessoas da comunidade, em seu relacionamento. Aliás, a comunidade e a família aparecem como uma extensão, na vida, do próprio tratamento, apresentando a Lars as experiências emocionais das quais ele tenta evadir, ajudando-o a conter e a cuidar dessas experiências. E o filme mostra bem que o acolhimento da comunidade passa pelo reconhecimento das pessoas quanto a sua própria esquisitice, uma condição necessária para receber e compreender a esquisitice do outro.

Mas voltando a Lars, a separação psíquica de Bianca vai acontecendo, pari passu e em associação, com o desenvolvimento do seu repertório emocional e mental. Ele vai precisando cada vez menos de Bianca e começa a vislumbrar (sim, se nota ele olhando diferente para a Margoo) outras realidades possíveis. As sequências de cena no boliche mostram Lars interagindo com Margoo, num momento quando se presentificam as diversas ameaças das quais Lars se evadia com e através de Bianca. Margoo, o objeto de interesse, aparece bem mais habilidosa no jogo e rodeada de outros homens. Mas, após alguns instantes de medo e hesitação, Lars consegue se divertir, e sem Bianca. No dia seguinte, ela ‘não acorda’ e tem seu processo de morte anunciado. Lars deprime. Recusa-se ‘a perder’ seu objeto de amor. Tranca-se no quarto com ele. Porém nada resiste, quando a pulsão de vida pode encontrar um caminho para amadurecer e se complexificar. Bianca não é mais necessária. Lars finalmente pode ‘perder’, como expressão derradeira de sua nova possibilidade de vivenciar o luto. No final, tem-se a ‘caminhada’ de Lars em direção a uma outra realidade possível, mais rica de experiências emocionais.

O filme se faz importante, quando se tem em mente o crescente número de relacionamentos afetivos com chatbots ou robôs humanoides, na sociedade atual. As dificuldades inerentes às relações entre duas pessoas – as experiências de perda e medo da perda, por exemplo – têm levado cada vez mais ao isolamento e a relações de objeto mais superficiais, com riscos reduzidos. Vínculos com sistemas virtuais, com a pretensa ambição de oferecer às pessoas interações garantidas, ideais, com ‘respostas ideais’ às inquietações humanas, parecem despontar como um dos caminhos promissores de investimento objetal. É provável, pois, que seja através destas vinculações que se tente estabelecer a ‘séria brincadeira’ de vivenciar experiências emocionais e de amadurecer com elas. Algumas questões então se impõem: como pensar e construir essas tecnologias diante dessa ‘nova’ perspectiva? Serão os sistemas capazes de dar suporte e respostas individualizadas que promovam contato emocional e amadurecimento pessoal? Construiremos o ‘robô-analista ideal’?   


quarta-feira, 27 de abril de 2022

A Chegada




A Chegada

Direção: Denis Villeneuve



Simples e direto, o título ‘A chegada’ já prenuncia uma atmosfera impactante. Algo chega. Nada mais será como foi. E o filme é um desfile de chegadas. De naves. Alienígenas. De pessoas. Do futuro. Ele trata do impacto e das reações a chegadas decisivas, como marcos de um antes e um depois. Chegadas de um grande desconhecido, que sendo desconhecido, provoca medo, pânico, desconfiança e curiosidade.

O desconhecido faz parte de nossas vidas, embora a rotina das coisas familiares procure sempre nos proteger de seu contato perturbador. Talvez a grande questão do filme seja como fazer contato com o desconhecido face a toda turbulência emocional que lhe é inerente. A coragem necessária provavelmente se liga à vontade imperiosa da curiosidade, mas vai além. Poder estar curioso e buscar as respostas desejadas constitui uma condição, uma possibilidade, pessoal. Uma pessoa que, ao longo de seu processo histórico, tenha sido capaz de construir essa condição de ver no desconhecido algo mais do que somente ameaças. Um algo pelo qual valha a pena ‘rasgar as roupas de proteção’, como faz Louise, e se aproximar das ameaças. Algo como uma possibilidade de satisfação e enriquecimento pessoal. Freud associava a curiosidade e sua satisfação à descarga da, por ele chamada, pulsão epistemofílica, uma derivada da pulsão sexual, exclusiva dos humanos. Wilfred Bion foi um analista contemporâneo que deu grande destaque a essa pulsão, ao considerar a busca pela verdade e pelo conhecimento uma das três formas de vinculação do sujeito com o mundo.

Acercar-se do desconhecido exige, pois, coragem para enfrentar os afetos turbulentos gerados. Mas exige também, como parte da condição pessoal, uma boa capacidade de tolerar ‘o que não se sabe’. Respostas apressadas para o desconhecido costumam ser uma forma tentadora de tentar eliminar as angústias relacionadas ao ‘não saber’. Por outro lado, como Louise teima em insistir, passar a conhecer o que não se conhece é um processo que demanda tempo. E habilidade. Uma habilidade adquirida no contato com uma série de desconhecidos, durante a vida. Seja na vida pessoal, nas relações com as pessoas, seja na vida profissional, com o aprendizado de técnicas específicas de aproximação e intervenção junto a determinados objetos. Toda essa bagagem confere instrumento ao sujeito para continuar descobrindo novas formas de encarar o desconhecido, o qual se vai, então, podendo traduzir numa linguagem conhecida. E assim, aos poucos, se fazer reconhecer.

Saber algo sobre o desconhecido já pressupõe ter havido transformações na qualidade dos afetos iniciais perante ele. No filme, o medo e a desconfiança do expectador vão arrefecendo na medida dos progressos de Louise. As representações mentais do desconhecido como uma ameaça se vão modificando em favor de uma realidade diferente, que agora se sabe. Inclusive é nítida a discrepância quanto aos avanços de Louise e Ian nessa matéria, quando comparados com outros personagens alienados do contato mais direto com a nave. Quanto mais se transformam os afetos, mais ainda do desconhecido se vai podendo experimentar e traduzir.

Mas não só a experiência do sujeito com o desconhecido é passível de transformação. Também o sujeito em si, ele mesmo, se vai modificando. As visões intrusivas e os sonhos de Louise aparecem como expressão das mudanças psíquicas que se vão processando nela. O expectador se surpreende com a revelação de que essas vivências são, na verdade, como, ‘previsões’, como ‘lembranças de um futuro’. Aí se apresenta a grande proposta reflexiva do filme: será possível que as transformações, a partir da aproximação com o desconhecido, tenham tal alcance a ponto de mudar a maneira como alguém experimenta a passagem do tempo?

‘A chegada’ é uma obra que acaba servindo de modelo para compreender fenômenos respectivos a outras áreas do conhecimento humano que tratam do desconhecido. A psicanálise seria uma delas. Freud, ao enunciar a importância do Inconsciente para o aparelho mental, apresenta ao homem a realidade de nele habitar um desconhecido, a dominá-lo e influenciá-lo em toda extensão de sua vida. A formação do psicanalista baseia-se, essencialmente, em construir uma condição de aproximação com esse desconhecido e com toda a turbulência emocional associada a ela. Para tanto, o analista em formação precisa fazer contato com o seu Inconsciente, no contexto árduo e doloroso de seu próprio tratamento analítico. Também as habilidades técnicas necessárias se vão adquirindo na formação teórica e na experiência prática de psicanalisar, sob supervisão com analistas mais experientes. Como mostra Louise, uma bagagem fundamental para favorecer conexões de outras pessoas com seus desconhecidos.

Sobre a questão da vivência do tempo, Freud também a abordou em sua relação com as neuroses. Estas seriam a expressão de um ‘passado presentificado’, de ‘um passado que não passou’ e, por isso, não pode ser lembrado. Nas neuroses, o sujeito fica condenado a repetir os mesmos papéis, as mesmas estórias, indefinidamente, sem possibilidade de futuro. Parte do desconhecido, cujo desvelamento a análise busca, está no passado esquecido que submete o sujeito, sem que ele tenha qualquer conhecimento a respeito. O analista, então, tem a tarefa de apresentar ao sujeito partes suas desconhecidas. Ao fazê-lo, oferece a ele um ‘novo conhecimento’, a partir do qual ele já não pode ser o mesmo: se transforma.

Claro, esse processo não se dá facilmente, haja vista – diga-se novamente – a turbulência emocional relativa à conexão com o desconhecido. No filme, a turbulência também se faz representar pela ‘quebra’ da rotina no mundo, as ‘batidas de carros’, o clima de insegurança e desorientação gerados. Toda transformação verdadeira pressupõe uma ‘desestruturação de mundo’. Uma ruptura com as coisas como eram conhecidas para dar lugar à configuração de novas estruturas. Abandonar o conforto e a segurança das coisas já sabidas produz sofrimento, mas é o único caminho de mudança. Uma boa análise visa tornar possível este caminho. Nesse sentido, transformar, configurar novas estruturas é ‘apontar para o futuro’. Ao dar conhecimento e consciência ao que restava esquecido e ao que não era sabido, o analista ajuda o sujeito a construir o futuro – esse grande desconhecido. Construir o futuro é a forma pela qual se vai podendo ‘saber’ dele. Novas formas de ser, de pensar. Algo bem distinto do engessamento neurótico referido.

Sobre outro tema caro ao filme, a linguagem, a psicanálise também tem a falar. É através da linguagem, com seus signos, que o sujeito constrói as narrativas sobre ele mesmo e sobre o mundo. E essas narrativas podem ser mais engessadas, como vimos, ou mais abertas às diversas possibilidades de sentido e significados, como é próprio das palavras. Outras formas de comunicação diferentes da língua – o xadrez, no exemplo dado por Louise – confere um número bem restrito de possibilidades de papéis aos interlocutores. Na construção das narrativas, é interessante observar como personagens diferentes apresentam entendimento diverso quanto ao signo ‘arma’. Para os militares, ‘arma’ representa quase invariavelmente uma ameaça. Para Louise, uma linguista acostumada com a polissemia e os equívocos da comunicação, outros sentidos possíveis demandam investigação.

‘A chegada’, no entanto, não trata somente do desconhecido representado nas naves e nos seres de outro planeta. O personagem Ian admite razão mais significativa para as transformações que viveu: ter conhecido Louise. O amor como a verdadeira revolução. Ele quem oferece a substância que conecta o sujeito a um outro, diferente e também desconhecido. A psicanálise, para além da pulsão epistemofílica, direciona o foco para os laços de afeto que ligam o sujeito ao seu analista. Freud cunhou o termo ‘transferência’ para descrever os fenômenos associados a esses afetos. Relacionou-os a nossa tendência neurótica de repetir um passado esquecido, desde nossas primeiras relações com as figuras parentais. Somente sentimentos poderosos, como o amor e o ódio, podem, em instância mais profunda, ajudar a explicar como alguém espontaneamente se coloca no caminho árduo e doloroso de um processo rumo ao desconhecido e suas revoluções.

E somente pelo amor se é possível compreender a escolha final de Louise. Ciente de seu futuro de dor e de perdas, ela ainda assim escolhe vivê-lo. A psicanálise, no seu intuito de tornar conhecido o desconhecido, a partir da relação com ‘um outro’ que o representa, busca dar ao sujeito a possibilidade da escolha. Nas desordens mentais, o sujeito vivencia o sintoma como um fenômeno independente, automático, no qual qualquer escolha consciente está excluída. O sintoma se impõe, invade e se repete, à revelia do sujeito. Com o conhecimento progressivo, produzido no processo, o sintoma vai se fazendo relacionar e compreender a partir das experiências do sujeito, de sua história. Aquele fenômeno estranho e automático, a princípio, vai ficando conhecido. O sujeito vai podendo ressignificá-lo: de independente e impostor a algo que tem a ver com o próprio sujeito, com sua escolha.

Para finalizar, cabe ainda uma breve reflexão sobre a questão do tempo e seus significados. Talvez o tempo constitua o maior dos mistérios da vida. Para o homem, ele é um grande outro, desconhecido. O fascínio e a curiosidade provocados pelo tempo já erigiram diversas concepções de tempo, ao longo da História. Aristóteles, Isaac Newton, Albert Einstein são exemplos de grandes pensadores, revolucionários da concepção do tempo, em suas épocas. A psicanálise se destaca ao refletir sobre como cada mente humana e como uma dada geração humana configura uma concepção de tempo, tal como ela aparece em suas vivências. Mas talvez também a ciência, com suas novas descobertas e teorizações, possa proporcionar à psicanálise outros instrumentos e modelos que aprofundem os conhecimentos sobre esse outro grande mistério que é a mente. Bion dizia que áreas da ciência, como a astronomia e a física quântica, seriam importantes interlocutores do futuro para a psicanálise. É a progressiva e inesgotável aproximação desse desconhecido tempo, produzindo novas transformações no mundo e na psicanálise. Preparemo-nos para elas.

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

‘A monster calls’ ou os sentidos do chamado psíquico




Um dos mais importantes psicanalistas da atualidade, Wilfred Bion, propôs um questionamento acerca do valor atribuído aos sonhos sonhados enquanto dormimos. Para ele, deveria haver algum sentido psíquico para a atitude geral de desqualificar as realidades vivenciadas nos sonhos.   

Freud, ao fundar a psicanálise em 1900, postulou que os sonhos constituiriam um meio pelo qual o psiquismo realizaria os desejos não realizados durante a vida de vigília. Um sentido proposto por ele para a tendência de esquecermos facilmente dos sonhos – e talvez também para a atitude de subestimar seu valor – consistiria nas consequências psíquicas de ficarmos conscientes de nossos desejos e frustrações.

Alguns sonhos, no entanto, parecem lutar contra essa tendência de serem esquecidos e se impõem, com insistência, no nosso dia-dia. Na onda de tantos outros filmes e obras artísticas, ‘A monster calls’ destaca-se por colocar as vivências oníricas no centro da narrativa, trazendo à tona correlações de sentido entre elas e a vida de vigília.

O personagem principal, Conor O’Malley, um pré-adolescente inglês, tem um recorrente pesadelo: seu mundo está desmoronando, enquanto segura, desesperado pela mão, a sua mãe, prestes a precipitar-se num abismo. Conor acorda sempre neste ponto e, como não pudesse sonhar o restante do sonho, não mais consegue voltar a dormir.

Também se nos apresenta a vida acordada de Conor. Nas primeiras cenas, ele aparece como um jovem prestimoso, a fazer o próprio café e cuidar da casa. Sua mãe sofre de câncer, embora ele expresse intensa confiança em seu tratamento e recuperação. Na escola, é vítima do assédio e violência de alguns colegas de classe e parece responder passivamente a essas investidas. Há ainda a figura da avó cujas intervenções junto à condição da mãe lhe provocam sentimentos de raiva e irritação.

A narrativa vai evoluindo a partir da influência sobre Conor de uma outra experiência onírica. Um monstro assustador, sob a forma de uma árvore, surge-lhe - em devaneio, uma espécie de sonho acordado - com a intenção de contar a ele três estórias e a exigência de que, ao final, Conor lhe revelasse a quarta, a estória de seu pesadelo. De início, o jovem zomba do monstro, fruto de seus sonhos e imaginação. Mas ouve, de réplica, a seguinte pergunta: ‘como saber se a própria vida vivida não é também um sonho’?

A sinopse e a pergunta podem até dar a impressão de que ‘A monster calls’ trata-se de um filme bobo para crianças. As profundas experiências emocionais vividas por Conor refletem o oposto. O expectador fica tomado por elas através das diversas dimensões dos sonhos do personagem: seu pesadelo durante o sono, seus devaneios e sua vida acordada.

Vai ficando evidente, por exemplo, que o otimismo do jovem com o tratamento da mãe não se mostra tão inquestionável como parecia. Embora não pareça admiti-lo mais diretamente, algumas expressões de Conor dão sinal de sua desconfiança. Ele pergunta mais de uma vez à mãe, por exemplo, se ela não lhe gostaria de contar alguma coisa.

A figura da avó, no entanto, parece concentrar mais os sentimentos de desconfiança e hostilidade do menino. Psicologicamente, talvez ela representasse melhor os riscos relacionados ao adoecimento materno, com suas constantes e rígidas intervenções. A perspectiva de perder a mãe e ir morar com a avó era difícil de ser encarada e Conor a repelia com irritação. Seu pai, por outro lado, parecia-lhe amoroso e compreensivo, mas o jovem se ressentia de não encontrar espaço no ‘outro país’ onde o pai morava com uma nova família.

O amadurecimento do personagem e sua ‘revelação final’ vai sendo construída na relação com o ‘monstro’ de seu devaneio. A recusa e o medo iniciais vão dando lugar à demanda – Conor passa a desejar as conversas com o ser fantástico. As estórias contadas por ele aparecem permeadas de paixões, perdas e personagens complexos, que não são o que aparentam ser, afinal. ‘As estórias são criaturas selvagens’, adverte o monstro, e aquelas, contadas entre os dois, já estavam produzindo efeitos sobre o garoto.

Passamos a acompanhar as transformações do personagem. Sua agressividade, antes mais contida, agora expressa-se com intensidade. Ele destrói a sala cheia de relíquias da avó. E esmurra seu colega abusador, mandando-o para o hospital. O jovem prestimoso e passivo vai podendo vivenciar outras experiências, outras maneiras de ser ele mesmo. Vai se dando conta também de seu desejo de punição e da complexidade dos sentimentos e das estórias que o habitam. É quando a parte do sonho não sonhado, aquela mesma interrompida de seu pesadelo, vai podendo ser vivida.

A atitude compreensiva do monstro e dos outros personagens de seu sonho desperto contribuem para que Conor vivencie suas novas experiências de uma forma menos ameaçadora. O enunciado final de seu pesadelo, até então não sonhado o coloca definitivamente diante do ‘monstro’ que tentava evitar: ele mesmo e o desejo de livrar-se da incômoda mãe adoecida. Dar-se conta de uma representação tão desagradável de si não acontece senão com muita dor. O monstro, porém, já não assusta mais tanto e, consolado por ele, Conor pode enfim perceber-se como o ser completo e contraditório do humano.

E pode ficar livre para sonhar outros sonhos. O pesadelo, afinal, era apenas uma parte de si tentando exprimir-se contra uma resistência do tamanho da dor que prenunciava. Conor podia estar agora mais diante da realidade da perda de sua mãe. Estava mais seguro de seu amor por ela, pois agora conseguia experimentar e compreender mais os sentimentos hostis que sentia também por ela. E dela pôde se despedir.

De uma outra perspectiva, a parte não sonhada do pesadelo comunicava a Conor a impossibilidade de ele ‘salvar’ a mãe. Ela punha termo à onipotência infantil e à ilusão de conservar o laço edipiano materno, tão universal às crianças e conhecido da psicanálise. Depois do adeus, seguimos Conor em sua nova vida, seu novo quarto (o mesmo da mãe quando criança?), com as lembranças maternas como prova de que ela estaria presente na vida dele, não materialmente e sim como imagem a acompanhá-lo por suas próximas estórias.

Uma questão fica: o que seria esse ‘monstro que chama’, que parece reivindicar atenção?

Freud entendia as imagens oníricas como um produto condensado de várias outras imagens e experiências emocionais distintas. Talvez o monstro representasse o pesadelo e sua recorrência, seu clamor por expressão. Talvez representasse a onipotência do menino, desejoso de ‘ser poderoso’ para curar a mãe. Quem sabe fosse a própria agressividade contida ou o anseio por uma figura paterna forte e protetora a guiá-lo num período de aflição. Ou, como referido, esse monstro fosse ele mesmo, sua parte que queria ‘matar a mãe e seu sofrimento’; sua parte que representava o fracasso da onipotência e a renúncia dos desejos edípicos.

Como as imagens oníricas, também as pessoas e coisas da vida desperta funcionam na mente como representantes de nossas experiências emocionais. Nesse sentido, a vigília não parece tão diferente dos sonhos. ‘A monster calls’ é, na realidade, um grande chamado para que se preste atenção à vida psíquica. Em toda sua grandeza e monstruosidade.   

A psicanálise faz o mesmo chamado. Todo bom analista é como um monstro a apresentar ao sujeito suas partes dolorosas, que não podem ser sonhadas e, por isso, ‘cobram’ apreciação. Nas cenas finais do filme, Conor descobre seu monstro nos cadernos e nas estórias da mãe-criança. E fica no ar outras perguntas: será que ela, de alguma maneira, transferiu para o filho sua capacidade de sonhar? Seria o monstro também uma representação dessa capacidade?

Essa é toda a esperança de uma análise. Transferir para um outro a capacidade de sonhar os sonhos não sonhados. Como no desenho último, sujeito e monstro abraçados.   



sexta-feira, 24 de julho de 2020

Pandemia, saúde mental e psicanálise

Há uma preocupação crescente e compreensível com a saúde mental das pessoas nesse contexto de pandemia do novo coronavírus. Nem sequer um continente do globo foi poupado da experiência de adoecimento imposta pelo micro-organismo e todos se questionam sobre os possíveis impactos psíquicos provocados. Há uma gama de sentidos psicológicos que têm influência em sensações subjetivas de bem-estar e no surgimento, agravamento e até mesmo desaparecimento de sintomas psicopatológicos. Vamos tentar conhecê-los e refletir sobre eles à luz de alguns conhecimentos da Psicanálise.

Para começar, está-se falando de uma ‘pandemia’: pan, do grego, significa tudo, todos; e demos, significa povos. Trata-se de uma doença, portanto, que submete ‘todos os povos’ a um risco de adoecimento ou mesmo de morte, como facilmente se tem percebido nos números diários, divulgados, sem descanso, pela imprensa mundial. Mas o que representa, para a mente, estar submetida a alguém ou a alguma ‘coisa’? E estar submetida a uma ‘coisa natural’, um elemento da natureza, produz reflexões adicionais? O que representa estar sob a ameaça de adoecer gravemente ou mesmo poder vir a morrer?


A expressão ‘estar submetida’ evoca, de cara, uma sensação de passividade, de perda do controle. O vírus e sua doença corresponderia a algo ou alguém mais forte, mais poderoso, a dominar o cenário de escolhas. Muito se tem falado, por exemplo, sobre o golpe imposto pelo vírus à vaidade humana e suas ilusões de controle, o que é verdade. Todos nós precisamos construir a ideia de que temos algum controle sobre nossas vidas, sobre nossas experiências emocionais. Do contrário acabaríamos paralisados, inertes de medo, incapazes de lidar com os estímulos que nos invadem, de fora e de dentro. Em alguns transtornos mentais, a construção dessa ideia pode ficar prejudicada. Algumas pessoas vivem uma vida inteira sob o domínio de uma fantasia de ameaça descomunal. Elas demandam constantemente a presença de ‘um outro’ para acalmá-las e fazer as escolhas que sentem não poderem fazer sozinhas. Mas mesmo sujeitos saudáveis, sem qualquer diagnóstico psicopatológico, podem vivenciar contextos de vida nos quais o medo, o pavor, torna difícil assumir as escolhas. É quando se deseja que alguém aponte o caminho, o erro. Aliás, no popular, sabe-se bem disso: quando se sofre é quando mais fervorosamente se apela a Deus.

A carência de um controle exterior, de uma força a determinar nossos destinos e escolhas constitui vivência conhecida nossa. Nos primeiros anos de vida do sujeito, enquanto bebê, se experimenta uma total situação de passividade e dependência em relação a um outro, inclusive para a sobrevivência. As necessidades nutricionais precisam ser supridas ‘de fora’. Retornar a um estado de coisas semelhante, quando se espera ter as necessidades prontamente atendidas e nenhum desgaste ou esforço precisa ser feito, sempre nos há de parecer uma solução tentadora. Assim é que a pandemia pode funcionar como ‘esse outro’, essa ‘força maior’ a definir as escolhas, o destino do sujeito. ‘Mas ora’ – protesta-se – ‘desejar estar submetido a algo que nos atenda até se pode compreender, mas como se compreende a ideia de sentir-se ‘bem’ ficando submetido a um destino tão sofrível como a doença e a morte’?

Do ponto de vista psicanalítico, a pandemia tem o potencial de reforçar psiquicamente as fantasias de ligação com esse ‘outro’ poderoso dos primeiros anos e a restituir a posição infantil de ‘passividade’, na qual toda satisfação e sofrimento ficam ‘dados’. Diante de um tal estado de coisas, nada há que ser buscado, tudo já se tem. Tudo já está determinado, prescrito. Desaparece a angústia do não saber, pois este ‘outro’ tudo revelou: é a doença, é a morte. Ainda que duro e sofrível, aqui trata-se de um destino certo, definitivo, cuja possibilidade de mudança não pode ser nem ao menos percebida.  É como se, olhando-se pelo vértice religioso, de repente, o próprio Deus tivesse descido dos céus e anunciado finalmente o destino humano. Que se pode fazer contra Deus? De sorte que algumas pessoas (todas, pelo menos por alguns momentos e circunstâncias) podem experimentar alívio de estarem desresponsabilizadas de suas dores e infortúnios. E de poderem reaver esse ‘tudo’, esse ‘Deus’ familiar de nossa infância e perdido no processo de desenvolvimento psíquico. Em nossa contemporaneidade, quando tanto se fala em ‘falta de sentido’, em ‘crise de identidade’, pode-se compreender como uma experiência como a pandemia tem o potencial de preencher, momentaneamente, esses vazios.

Pode-se traçar um paralelo entre esse estado primitivo do desenvolvimento dos homens e a vida psíquica dos outros animais da natureza. Os animais, como os bebês humanos, estão submetidos aos desígnios naturais. Tudo lhes é ‘dado’ pela natureza. Se há alimentos disponíveis saciam sua fome. Se não há, morrem, não têm escolha. Os bebês humanos, contudo, apresentam potencial de ir bem mais além. Seu amadurecimento psíquico reflete esse potencial. Eles se vão tornando capazes de ‘representar’ o mundo, a natureza, internamente, dentro de si. Para ter a experiência psíquica de um objeto, o homem pode prescindir da sua percepção real e imaginá-lo ou mesmo pensar seus atributos. Tal capacidade lhe é inerente ao corpo, ao seu potencial biológico, e vai sendo desenvolvida pela transmissão da capacidade de representar dos pais e da cultura. Seus instintos, suas demandas corporais, para além de se descarregarem na natureza, encontram caminho na constituição da mente. Na constituição de um aparelho mental que, representando a natureza, se torna apto a entendê-la e a modificá-la.

Se ‘estar submetido’ tem um sentido de conforto e bem-estar para o homem, também parece se pôr em desacordo com seu potencial, a permanência e aceitação passiva de situações de extremo desconforto. Ao ‘descer da árvore’ – para evocar uma perspectiva evolutiva e filogenética – o ‘primeiro homem’ recusou o destino natural dos animais e deu o primeiro passo para a construção de um caminho próprio. Ao fazê-lo, tomou para si as rédeas da existência e assumiu, como sua, a angústia relacionada às insatisfações pessoais. Em psicanálise, a angústia, a dor psíquica, é uma das condições necessárias para a constituição do desejo, que mobilizará o homem na trilha de um caminho de buscas e transformações. Um caminho que hoje a História das civilizações nos pode contar. E recorrentemente ela nos conta dos vários momentos nos quais as ambições humanas, de desvencilhar-se de seus aspectos naturais, chocou-se de frente com uma verdade inexorável. Disse Freud, ‘O ego é, antes de tudo, corporal’. O homem é, antes de tudo, de qualquer representação psíquica, de qualquer esboço de aparelho mental, de qualquer cultura, seu corpo. E também dependem do corpo e dos potenciais naturais que o habitam, seus desenvolvimentos psíquicos e culturais ulteriores.

A pandemia do coronavírus constitui um desses momentos históricos, quando o ‘corpo’ torna a ser o palco do embate entre o ‘ser da natureza’ e o ‘ser da cultura’. Quando Freud constrói a psicanálise, ele analisa em predominância um outro palco, o da mente. Na mente, ambos os seres também travam um duelo, cujo resultado determina uma experiência psíquica mais ou menos saudável e que pode também produzir manifestações corporais. O corpo, em si, é palco de estudo direto das ciências biológicas. Mas num contexto de pandemia, ‘a mente se volta para o corpo’. Tem sido comum, por exemplo, que as pessoas se ponham a observar e vigiar os próprios corpos. A medicina tem dispendido tempo e recursos no esforço de avaliar o corpo, em suas relações com elementos naturais. E é intrigante (e também assustador) pensar como esse corpo que nos é tão familiar é, ao mesmo tempo, um enorme desconhecido. Com a mente, com a Ciência, ao homem é dado conhecer uma parte desse corpo natural, enquanto outra, bastante maior, jaz na absoluta escuridão. E, claro, tudo isso tem impacto na mente que observa, inclusive porque o desfecho desse embate a ameaça de completa destruição.

Assim é que atitudes hoje mais conhecidas como ‘negacionistas’ podem ser compreendidas. ‘É só uma gripezinha’ parece restaurar a ilusão de superioridade do ‘ser da cultura’ e driblar as angústias inerentes a um perigo desconhecido e mortal. Essa ilusão de superioridade costuma ocultar o seu exato oposto: uma fragilidade psíquica significativa, que torna a mente improdutiva face ao inimigo.

De outro modo, esse ‘ser da natureza’, percebido de maneira tão grandiosa quanto os pais fantasiados da infância, evoca sensações complexas e diversas. A nostalgia de um ‘outro onipotente’ e dos tempos nos quais a realidade toda era ‘dada’ e nada restava que ser buscado pode associar-se a um alívio da angústia, já que as capacidades do homem ficam recusadas, fora de seu campo de percepção. Ele torna, então, ao destino de pré-determinação natural e desresponsabiliza-se da qualidade de sua existência. Em uma perspectiva social, uma pandemia global, que sinaliza risco de adoecimento e morte a todos, parece implicar, a princípio, em redução das diferenças habitualmente observadas entre as pessoas. O efeito psíquico no indivíduo pode ser o de alívio das tensões relacionadas à competitividade e a sentimentos de inveja.

Ainda no contexto da grandiosidade do ‘ser da natureza’, a ameaça de destruição pode ser vivida também com grande pavor paralisante, em especial se o homem se sente incapaz de fazer qualquer coisa para lidar com o perigo que o ameaça. São os casos nos quais, seja de momento ou de caráter duradouro, o sentido de possuir algum controle psíquico sobre a condição se mostra bastante enfraquecido.

Quando os dois lados do embate podem ser reconhecidos, com seus devidos potenciais, torna-se possível fazer uso da capacidade representativa humana e perceber a realidade de forma mais completa. A sensação de se ter algum controle sobre a vida se fortalece. É bem verdade que a angústia se estabelece e impacta, pois o embate não fica, como nas situações anteriores, resolvido com a negação ou recusa de uma das partes. A realidade representada mais totalmente é passível de análises, compreensões, transformações. Assim é que se tenta encontrar uma vacina; se propõem e implementam medidas de controle da disseminação do vírus; toda uma sociedade se articula – movimentos solidários se fazem mais presentes. A crise instaurada pelo vírus, como outras crises da História, se converte em oportunidade de desenvolvimento de novas tecnologias científicas e sociais para um melhor viver.

Em nível individual, muitas mudanças são requeridas – o sujeito precisa se isolar; sua rotina de trabalho modifica; já não conta com as atividades de lazer costumeiras; não encontra mais familiares ou pessoas queridas; processos sociais que envolvam aglomeração de pessoas ficam impedidos, como até mesmo os velórios e sepultamentos. E como em toda mudança importante, mecanismos psíquicos de luto são acionados. Sobrevém a necessidade de abandonar os hábitos antigos para possibilitar a construção de novas maneiras de existir. A tecnologia de nosso tempo, e seus melhoramentos decorrentes do contexto pandêmico, vem funcionando como expressão dessas novas maneiras. Mas sim, também não há luto sem dor e sentimentos de tristeza, raiva, medo, desesperança são naturais e esperados. Para algumas pessoas pode parecer mesmo impossível desligar-se de seu mundo anterior e elas acabam mais sujeitas a adoecimentos do espectro clínico das depressões.

Uma situação curiosa, que vem sendo observada com frequência nos tempos de quarentena, é o fenômeno dos ‘superprodutivos’. Os indivíduos assim denominados aparentam ‘não parar’, se envolvem em inúmeras atividades, preenchem os dias com sequências de compromissos, mesmo isolados em casa. Eles podem dar a falsa impressão de estarem adaptados, quando, de fato, podem estar sofrendo de uma ‘compulsão’ por manterem as mentes ocupadas. O vazio, a solidão, o medo que a pandemia inevitavelmente evoca têm sua realidade obliterada pelas ocupações sucessivas. Percebe-se aí um sentido psicológico de autodefesa para um comportamento de tal espécie.

Voltando ao ‘palco’ da pandemia, ao corpo, nele é onde se esperam encontrar as expressões mais marcantes de angústia e padecimento. Isso também porque as experiências psíquicas potenciais associadas ao contexto pandêmico podem ser ‘demais’ para a mente do sujeito e provocarem-lhe algo como um ‘curto-circuito’ momentâneo. Algumas pessoas já apresentam uma tendência, constituída durante seus processos de desenvolvimento mental, de serem menos capazes de utilizar a mente como instrumento para representação e elaboração dos fenômenos corporais. Nestes curtos-circuitos, é como se a mente ‘desligasse’, embora, na superfície, ela aparente estar funcionando normalmente. Acontece somente que algumas experiências acabam sem representação, sem expressão através dela e, sem esse caminho psíquico, acabam por se descarregar, de forma direta, no corpo. Tem sido frequente observar pessoas queixarem-se de ‘ansiedade, angústia’, principalmente com sintomas físicos. Quando se lhes questionam os contextos psíquicos relacionados, elas pouco ou nada têm a dizer. Muitas vezes nem a pandemia é referida de um jeito mais significativo. E algumas chegam mesmo a adoecerem das maneiras as mais diversas. Algumas vertentes da psicanálise, que enfatizam a importância do cuidado em saúde mental para manutenção e recuperação da própria saúde física, baseiam-se em observações como essas.

Relevante frisar que a variedade de reações e manifestações psíquicas descritas podem compor o leque de manifestações da dita vida psíquica normal. Pessoas mentalmente saudáveis podem experimentar momentos de negação dos riscos, alternados com instantes de medo intenso e paralisante; podem se sentirem consoladas de insatisfações crônicas, quando a pandemia lhes rouba o protagonismo; ou ainda, não sem expressar dificuldades, podem buscar e encontrar adaptações e mudanças para conviverem com o novo contexto. Um dos verdadeiros sentidos da patologia mental consiste na cristalização, no engessamento das manifestações psíquicas em uma só forma. A flexibilidade e a plasticidade pessoal, nesses casos, ficam perdidas.

Daí a atenção, tão necessária na rotina e mais ainda em tempos de graves ameaças ao sujeito humano, para a mente e os aspectos de seu funcionamento. Ela constitui a mais definitiva marca do ‘ser da cultura’, justamente naquilo que diferencia o homem do restante dos outros animais. Para realizar o potencial humano de desvencilhar-se dos destinos impostos pela natureza – agora com o coronavírus - a cada momento, faz-se essencial o investimento nesse ‘ser da cultura’, na mente e sua capacidade representativa. Quem sabe assim se conseguem manter perenes os caminhos que convertem toda crise em oportunidades de crescimento e construção de novas formas de existir.         
        
        
      


domingo, 12 de julho de 2020

Dark e a psicanálise



Esse texto trata-se de uma tentativa de transpor para o papel algumas reflexões sobre Psicanálise despertadas pela série Dark, da Netflix. Ele contém SPOILER: se você não assistiu à série toda talvez convenha parar por aqui, inclusive porque há de fazer falta o conhecimento dos fatos disparadores destas ideias. Cabe a ressalva de que Dark não é uma obra inspirada diretamente em teorias psicanalíticas. Pensadores como Nietzsche, Schopenhauer e Einstein, mais do que Freud, por exemplo, parecem exercer influência decisiva sobre o sistema de pensamento fundamental da série. Em tudo o que é humano, no entanto, se pode encontrar matéria para reflexões psicanalíticas, ainda mais onde se concentram temas tão profundos e essenciais como as questões do desejo, do sofrimento, da repetição, da temporalidade e as tentativas humanas de manejar essas questões.

Para manter o embalo da série, sempre a insistir que o começo é o fim e o fim é o começo, iniciaremos as reflexões pela solução final apresentada, no último episódio, para esclarecer a existência dos dois mundos de Dark. O trauma experimentado pelo personagem Tannhaus, com a morte de sua família – o filho, a nora e sua netinha – em um acidente de carro, aparece como a ‘dor que forja o desejo’ do cientista (mais sobre as relações entre dor e construção do desejo será debatido mais adiante). Seguindo Tannhaus, ele passa a tentar encontrar meios de superar os limites impostos pelo Tempo, retroceder no passado e assim evitar o trágico acidente. Como homem de Ciência, é decerto natural que ele busque esses meios cientificamente e uma ‘máquina do tempo’ é construída. O intento sai mal, entretanto, e a máquina acaba dividindo o mundo em dois: o mundo de Jonas/Adam e o mundo de Martha/Eva. Ambos os mundos se caracterizam pela possibilidade de realizar viagens no Tempo e entre os seus espaços paralelos. Curiosamente, a odisseia dos dois mundos, após sucessivas e quase intermináveis repetições de ciclos, nos quais ‘tudo acontecia conforme já houvesse acontecido antes’, termina por conseguir restaurar o mundo original de Tannhaus, evitando a ocorrência que vitimizou sua família.

Pois bem: uma estória tão fantasiosa, no melhor sentido do gênero da ficção científica, que poderia ter a ver com psicanálise? Os personagens centrais – Jonas/Adam e Martha/Eva – também são marcados por perdas muito significativas. Mais ainda: evoluem, em suas existências, tentando encontrar meios de reparar as perdas. As viagens no Tempo e entre os universos paralelos passam a constituir o meio mais significativo para as tentativas de reparação. Rapidamente, os personagens, antes enamorados um do outro, se opõem. Para ele, reparar passa a ter o sentido de destruir, de acabar com a existência humana e sua cadeia infindável de repetições e sofrimento. Para ela, passa a ter o sentido de impedir o êxito de seu amante e salvar seu filho, mesmo que isto signifique perpetuar os ciclos de repetições.

Não parece um tanto curioso o fato de Tannhaus, Jonas e Martha compartilharem sofrimentos e destinos reparadores razoavelmente parecidos? Sem dúvidas, se poderia argumentar que sofrimentos e destinos reparadores são comuns a toda a humanidade e essa ressalva merece ser considerada, talvez, como uma irrefutável contestação às ideias que virão a seguir. Mas quanto às viagens no Tempo? E as tentativas concretas de retroceder ao passado e mudar o rumo de fatos traumáticos? E o desejo de coabitar em tempos e mundos paralelos onde as perdas não teriam ocorrido como ocorreram? A ideia que se insinua aqui e só indiretamente se depreende da narrativa é sobre a existência de um ‘terceiro mundo’, na série o ‘mundo original’, que dá origem e sentido – significado - às existências e às aparências dos demais mundos. Ou seria ao acaso ou desprovido de sentido que Jonas se pusesse a viajar entre os vários anos, portando uma máquina do Tempo? Ou mesmo que o desfecho da série e a dissolução dos mundos coincidisse com a dissolução do trauma de Tannhaus? A psicanálise ensina que os acasos e as coincidências não existem para quem sabe da existência do Inconsciente. Sim, o Inconsciente, tal como teorizado por Freud, seria uma espécie de ‘mundo original’, como o de Tannhaus, a conferir sentido e significado às experiências dos homens. O mundo de Tannhaus e seu trauma não apenas dá origem aos demais mundos. Ele também influencia decisivamente os acontecimentos, os movimentos dos personagens, seus desenvolvimentos, as aparências que esses mundos têm, tudo. É como também ensina o mito da caverna de Platão: o mundo tal qual o percebemos são, na verdade, apenas sombras de formas originárias intangíveis.

E esse mundo, do Inconsciente, ele tem mecanismos de funcionamento bastante peculiares que, somente aos poucos, a psicanálise vai desvendando. Freud, por exemplo, descobriu que o trauma divide a mente (pasmem, assim como aconteceu com o mundo de Tannhaus) em duas partes: uma vive um tipo de ‘ilusão’, negando a existência do trauma, enquanto a outra considera sua realidade. As duas partes se põem em oposição, em conflito perene por toda a existência do sujeito. Influências e marcas de ambas as partes podem ser identificadas na vida psíquica e na maneira como o mundo e seus objetos são percebidos por cada um de nós. Dessa maneira, a psicanálise também demonstra como as experiências traumáticas são um destino comum a todos os humanos e como vêm a ser constitutivas de seus mundos.

Outro fator decisivo na série e de extrema importância em psicanálise é o tema da repetição. Os diversos ciclos de tempo são ditos a repetir-se infinitamente. Diálogos inteiros parecem ocorrer de novo e de novo entre personagens em tempos diversos. O sentimento de deja vu, bastante citado, fica ainda mais claro na sensação produzida no expectador das repetições insistentes, apresentadas como inescapáveis, como uma compulsão a repetir, e sim este é um conceito psicanalítico observado por Freud. Existe uma tendência, nos homens, a reproduzir os mesmos papeis nos relacionamentos que estabelece, ao longo da vida. Ele tende a procurar (e, melhor dizendo, tende a encontrar) pessoas e coisas com as quais pode estabelecer um padrão razoavelmente estereotipado de relação. O ‘roteiro’ se vai repetindo em cada relação, não importando muito as distâncias temporais entre elas. Em Dark, as viagens no Tempo dão a essas repetições um sentido muito concreto. Na sequência dos episódios, se vai descobrindo que as relações do adolescente Ulrich Nielsen, por exemplo, com o comissário Egon Tiedemann, em 1986, já estavam influenciadas pelo encontro entre o adulto Ulrich e o jovem comissário Tiedemann, em 1953. A desconfiança do comissário para com o adolescente e até mesmo seu interesse por uma citação contida num disco ouvido por Ulrich, em seu quarto, soam como ecos de um tempo remoto.

Claro que no mundo atual (ainda, talvez) não é possível trafegar entre tempos diversos. Mas a ideia de reencontrar pessoas ou coisas significativas (vamos utilizar o termo ‘objetos’, mais conhecido da psicanálise) do passado está longe de ser estranha entre os analistas. Para estes, todo encontro com o objeto é, na realidade, um ‘reencontro’. Isso porque uma propriedade definitiva do inconsciente é a sua atemporalidade. Passado e presente coexistem simultaneamente no inconsciente de tal maneira que alguém que venha a ser objeto do desejo, do interesse do sujeito, na verdade, costuma representar outros objetos significativos, de outros tempos. O objeto do presente guarda traços de semelhança sinalizadores de sua relação com objetos antigos e, por isso, a psicanálise pode demonstrar essa tendência humana em repetir os mesmos padrões de relacionamento, seja qual for o tempo. Para o inconsciente, os intercâmbios temporais não apenas existem, mas constituem uma de suas regras de funcionamento mais essenciais.       
        
Falar do Inconsciente como um ‘outro mundo’, a estruturar, conformar e dar sentido a outros mundos, como o das nossas consciências, faz referência a uma outra ideia com frequência reverberada na série. ‘Não somos livres nas nossas atitudes, porque não somos livres nos nossos desejos, não conseguimos ir contra aquilo que está dentro de nós’. Muitas vezes, acreditamos querer alguma coisa e nos espantamos ao seguir a exata direção oposta. Há uma diferença entre o ‘querer’, correspondente à percepção consciente do desejo, e o desejo de fato, aquele do inconsciente, tão profundamente dentro de nós. E esse desejo profundo é tão poderoso que pouco podemos fazer contra seus desígnios. No fim das contas, isso torna os homens, como lembra a série, ‘sujeitos descentrados’.

Retomando as relações entre o ‘forjar esse desejo profundo e a dor’, a psicanálise destaca que esse ‘forjar’ vai se dando gradualmente, no processo de desenvolvimento da mente, quando o sujeito vai podendo reconhecer a existência de ‘um outro que lhe falta’. Tal reconhecimento corresponde ao descobrimento do objeto significativo, que ocorre comumente nos primeiros anos de vida. Daí a importância conferida por Freud à infância. Embora pareça uma descoberta banal aos olhos adultos, tão inebriados pela lógica racional, ela põe termo a um desejo humano tão fundamental quanto primitivo: o da autobastância. Em si, isso já constitui um ‘grande e doloroso trauma’ e justo ele provoca aquela divisão da mente, nas duas partes referidas antes. As duas partes brigarão o resto da vida e deixarão suas marcas indeléveis na vida do sujeito. Diversos são os caminhos que podem ser tomados pelos conflitos entre as duas partes. Uma saída possível (e desejável) é a de que o sujeito reconheça sua condição de incompletude e se torne capaz de conviver com o trauma e a dor. Por este caminho, ele restará condenado a buscar eternamente seu ‘objeto perdido’, ‘a parte que lhe falta’, entre os objetos do mundo. Restará condenado sempre ao esforço da tentativa de ‘reencontrar’ este objeto, não à toa, tão parecido com as imagens construídas em sua mente, na infância, pelas figuras e ideais dos pais.

Tannhaus, entretanto, toma rota distinta. Incapaz de conviver com o trauma e a dor, seu desejo imperioso o convence da possibilidade de recusá-los, de apagar a ambos, dor e trauma. Ele se convence da realidade das viagens no Tempo-espaço e da possibilidade de impedir o acidente e ‘ressuscitar os mortos antes que estes houvessem morrido’. Nesta perspectiva, Dark pode ser compreendida como a concretização delirante do desejo de Tannhaus, ricamente representado por múltiplos personagens e suas vicissitudes, com ‘os dois mundos lutando entre si’. O mundo de Martha/Eva a lutar pela ‘manutenção dos mundos’, ou seja, pela ilusão da ‘sobrevivência do filho’; e o mundo de Jonas/Adam, fortemente identificado com a dor e o trauma das perdas, com evidentes expressões de melancolia, a querer pôr fim a tudo pelo suicídio. É interessante como na última temporada da série o filho de Martha e Jonas fica apresentado como o ‘nó’, como ‘a origem’ dos mundos. Mas será que esse filho não representa o ‘outro’, o de Tannhaus, cuja morte consiste exatamente na experiência traumática que criará aqueles dois mundos? Não seria esta, de fato, a origem de tudo? Outro detalhe: Tannhaus, nos dois mundos, aparece mais como um personagem secundário, alguém a quem os projetos do livro e da ‘máquina do Tempo’ chegam passivamente do futuro. Ele mesmo se define como um ‘homem do presente’ que ‘não se interessa em retornar ao passado’. Uma definição bastante contraditória, considerando a solução final exibida. Poderia ela estar a serviço de um tipo de ‘disfarce’, cujo sentido seria manter Tannhaus alienado de seu trauma e suas intenções fundamentais relacionadas?

O último episódio apresenta esse final, que na verdade é o começo. Até então os dois mundos duelavam por seus intentos e tudo que havia era o resultado, um tipo de ‘mistura’, de suas influências. Jonas/Adam nunca pôde suicidar-se. Martha/Eva mantinha a ‘ilusão’ de poder salvar ‘o filho’. Foi Cláudia Tiedemann quem, conseguindo afastar-se do cenário concreto, da realidade da briga entre os dois, quem pôde vislumbrar ‘um outro mundo’. E isso tem tudo a ver com psicanálise. O analista será aquele a tentar se desvencilhar dos fatos concretos da vida e das crenças que o analisando transmite sobre si e sua realidade, buscando contato com esse ‘outro mundo’, o do Inconsciente. Quando aponta a existência do Inconsciente, o analista propõe ‘outros sentidos possíveis’ para as percepções do analisando, os quais não podiam ser percebidos antes. Isso acontece porque o Inconsciente existe e ele é o ‘outro mundo’ a dar origem e significado às experiências imediatamente conscientes do sujeito.

Quando Cláudia Tiedemann revela a existência do ‘terceiro mundo’, o ‘nó’ já pode ser desfeito e os ciclos de repetição incessante já podem ser transformados. Na série é como se o delírio de Tannhaus alcançasse êxito e seu trauma acabasse sendo mesmo apagado juntamente com os ‘dois mundos’ expressivos de seu sofrimento interior, como se essas dores nunca tivessem ocorrido. Em psicanálise, isso é bem diferente. Não é função do tratamento analítico (e não seria possível se o fosse) ‘apagar’ a experiência do trauma e da dor. Tudo que faz o analista é o esforço de ‘apresentar’ o analisando ao ‘outro mundo’, ou seja, apresentá-lo a sua ‘dor’, ‘ao seu trauma’, que conforma e dá sentido ao seu mundo real perceptivo. Quando assistimos ao último episódio de Dark, pensamos: ‘ah, então era isso o tempo todo’. Sim, afinal o trauma originário estava ali o tempo todo, desde o começo, embora só nos tenha sido apresentado no final. Está aí uma outra demonstração de que em psicanálise, como em Dark, o fim é o começo e o começo é o fim.

Naturalmente, a revelação do Inconsciente para o analisando não produz somente esse sentimento de compreensão e alívio. Pelo contrário, ao colocar o sujeito cada vez mais em contato com seus traumas profundos, a psicanálise provoca ‘crise, perturbação’. Também se imagine que desvelar para o analisando ‘um outro mundo’, um mundo até então desconhecido e inacessível, detona nele uma série de questionamentos sobre suas percepções atuais. Ele fica perdido, sem saber afinal, quem ele é. O analista é treinado para entender e acolher essas perturbações, proporcionando ao sujeito um contato gradativo, porém cada vez maior, com essa outra realidade. O processo analítico vai então enriquecendo a mente do analisando com um conhecimento crescente de si próprio. Os traumas e as dores vão ficando menos recusados, o sujeito vai podendo conviver mais com eles, a aceitá-los como parte integrante do seu ser. As partes da mente com seus respectivos mecanismos de manejá-los, de se defender deles, vão se dando mais a conhecer também, a se fazerem compreender mais mutuamente e assim diminuir a intensidade dos conflitos entre si. No fim, ao invés de apagado, o trauma pode restar ‘ressignificado’: ele pode ganhar outros sentidos, diferentes daqueles tão rígidos e cristalizados nas repetições monótonas, paralisantes e tantas vezes incompreensíveis dos sintomas.

Assim, quem sabe, ao término de uma análise, como ao término de Dark, um ‘novo mundo’ possa surgir das crises, dos questionamentos. Um mundo mais rico, mais autêntico, menos dividido e mais compreensível. Um mundo onde o trauma não fique tão ‘de fora’ das percepções, a submeter o sujeito a um destino final de sofrimento repetitivo e alienante. Mas que seja vivenciado, cada vez mais ‘de dentro’, como um ‘ponto de partida’ para o desbravamento de ‘novos mundos’ e possibilidades de existir.

sábado, 4 de julho de 2020

As vitrines



Eu te vejo sair por aí
Te avisei que a cidade era um vão
-Dá tua mão
-Olha pra mim
-Não faz assim
-Não vai lá não
Os letreiros a te colorir
Embaraçam a minha visão
Eu te vi suspirar de aflição
E sair da sessão, frouxa de rir
Já te vejo brincando, gostando de ser
Tua sombra a se multiplicar
Nos teus olhos também posso ver
As vitrines te vendo passar
Na galeria
Cada clarão
É como um dia depois de outro dia
Abrindo um salão
Passas em exposição
Passas sem ver teu vigia
Catando a poesia
Que entornas no chão


‘As vitrines’ é das músicas de Chico de que mais gosto. Impressiona a habilidade do compositor em construir personagens tão complexos sob a estrutura de versos e canções. ‘As vitrines’ me parece falar de um personagem assim e tipicamente um ‘voyeur’. Voyeur, na verdade, constitui o termo atribuído aos praticantes do ‘voyeurismo’ ou ‘escopofilia’, um tipo de perversão sexual, na qual o gozo, o prazer sexual, é obtido pela ação de ‘ver’, de ‘olhar’ os órgãos ou comportamentos sexuais alheios. De preferência, uma ação de ver insuspeitada, sem que o outro a perceba. Um olhar invasivo e desautorizado, de fato.
A música é permeada de expressões verbais com referências diretas e indiretas à ação do olhar, do primeiro ao último verso. ‘Eu te vejo; Olha pra mim’; ‘Embaraçam a minha visão; ‘Eu te vi suspirar...’; ‘Já te vejo brincando...’; ‘Nos teus olhos também posso ver as vitrines te vendo passar’; ‘Passas em exposição’; ‘Passas sem ver teu vigia. Os leitores poderiam retrucar: mas não se percebe nenhuma referência a órgãos ou comportamentos sexuais na letra. Do contrário, o personagem da música parece trazer mais um sentimento de queixa, de pesar, enquanto observa os movimentos da mulher amada.
Sim e aí entram alguns conceitos importantes emprestados pela psicanálise. Nosso personagem não seria um perverso clássico, dos que se masturbam, às escondidas, espiando frestas de portas e janelas de seu objeto de desejo. Ele seria mais uma espécie de ‘voyeur às avessas’, ou um ‘voyeur negativo’, como talvez diria Freud, quando teorizou que as neuroses corresponderiam ao ‘negativo das perversões’. O sujeito de ‘As vitrines’ seria, então, um neurótico, cuja única maneira de obter alguma quota de satisfação sexual (e aqui entenda-se o sexo não em seu sentido concreto, mas da maneira ampliada, conforme introduzida pela psicanálise) é ligando-se ao prazer ‘pelo seu lado negativo’, ou ‘pelo lado do contrário’. E por qualquer razão desconhecida, nosso personagem o faz através do ato de ver, olhar e espiar, inadvertidamente e sem plena ciência de seu objeto sexual, a mulher da canção.
Tal mecanismo, em psicanálise, de tomar ‘pelo lado negativo’ ou ‘pelo lado contrário’ pode ter sentidos bastante diversos. Sem dúvidas, ele parece disfarçar, ocultando o sentido do prazer sexual até mesmo para o próprio sujeito, que se faz mais consciente do lado do pesar e do sofrimento. Ele ‘disfarça’, ainda que a expressão da satisfação se faça notar de outras formas. ‘Algum ganho’ se pode suspeitar pela fixidez com a qual ele se liga ao ato e ao objeto, traduzida nas múltiplas variações do ‘ver’ e do ‘olhar’ a mulher amada, e na repetição monótona dessas ações, dia após dia, intuída no verso ‘cada clarão é como um dia depois de outro dia’. E a atmosfera de encantamento e adoração que a canção transborda parece também denunciar o sintoma de apaixonamento. Do nosso personagem por sua mulher amada, mas também o nosso próprio apaixonamento – nossos, dos ouvintes-expectadores - por ambos os personagens e pelas estórias que as cenas desenrolam. Quase podemos ‘ver’ mesmo as cenas – a cidade, a sessão de cinema, as vitrines, a galeria, um personagem à sombra a seguir os passos de uma mulher vistosa, dona de si e de seus movimentos. Somos levados a ‘nos encantar’ com os cenários urbanos e, de repente, somos nós quem desfrutamos voyeuristicamente dessas imagens.
E como não se encantar desse amor aparentemente tão incondicional, humilde e submisso, que parece mais do que tolerar, até mesmo adorar cada passo, cada movimento do objeto amado? E se, como é, de fato nos encantamos, então talvez compartilhemos, pelo menos enquanto ouvimos os versos e acordes da canção, da mesma neurose de nosso personagem. Um tipo de apaixonamento assim, que remete a graus intensos de platonismo, parece consistir em traço humano e universal. Um encantamento de tal monta por um amor assim poderia expressar uma espécie de desejo em ser amado ou amar dessa forma? Em acreditar nesse tipo de amor?
Na canção a mulher parece ser a dona dos movimentos. O sujeito, encantado, apenas a olha e segue por aí, pelas ruas da cidade. Ela é quem decide o que fazer, para onde ir. Nosso personagem parece resignar-se passivamente ao destino trágico dos enamorados platônicos de ‘catar a poesia’ que o outro entorna no chão. Ele parece estar ao chão, como as sombras multiplicadas. Ora, um dos sentidos do disfarce neurótico então não poderia ser este, de disfarçar as ações do próprio sujeito? De disfarçar a intencionalidade de seu olhar e esconder, numa imagem de amor puro e ideal, o prazer e o gozo sexual que ele frui? Ao posar de amante resignado à sombra, não estaria ele talvez temeroso de que suas intenções viessem à luz? Ou mesmo não poderia ele temer assumir a posição de sujeito e arriscar ‘ser visto’ pela sua amada?
Nosso personagem não ama a mulher real da canção. Ama a mulher que esta representa e que habita as instâncias ideais de sua mente. Ama a sua própria ideia de mulher ideal, portanto. Perigoso seria aproximar-se dessa mulher real, de fato, e quem sabe descobrir que a mulher idealizada não existe. E ainda mais: que ele mesmo, a fonte daquele amor puro e desinteressado não pode existir em uma relação humana. Prefere viver só, à sombra, escondido e submisso, a descobrir a existência de um outro diferente da própria ideia ideal que guarda de si. Existir como sombra de seu objeto sexual pode conferir-lhe alguma satisfação no encantamento que aufere do objeto e de si mesmo nesse papel, além de proteger-lhe de descobertas bastante dolorosas. Uma solução com a qual nós, neuróticos e avessos às ‘perversões’, com frequência desejosos dos disfarces ‘mais puros’, ainda mais se nos prometem amores incondicionais e livres do risco das separações reais, costumamos simpatizar.
‘Ah, mas na primeira estrofe o sujeito tenta se aproximar da mulher, suplicando-a que o veja, que não se vá, então ele tenta se aproximar dela’. A primeira estrofe, na verdade, parece trazer falas apenas do sujeito, de maneira que há dúvidas se se trata de um diálogo genuíno ou de um monólogo interior. Mesmo que o sujeito se dirigisse diretamente à amada, a forma de seu relato ratifica a concepção de seu objeto como algo inalcançável, sempre escapável e, portanto, ausente como realidade. Um diálogo concreto na primeira estrofe não modifica os papeis e os sentidos do objeto para o sujeito, enquanto vivenciados por este. Ele se mantém à sombra, passivo, encantado. A intuição mais precisa sugere que ele nem mesmo se percebe escutado pela amada. E sendo este o estado das coisas, fica difícil falar de aproximação com o objeto e de um diálogo.
Nesse sentido, ‘As vitrines’, enquanto título da canção, parece também fazer referência a uma espécie de existência na qual ‘só se vê passar’. O sujeito mesmo fica preso na redoma neurótica de suas fantasias e encantamentos.              

sábado, 19 de outubro de 2019

O enigma de Kaspar Hauser




O título escolhido no Brasil ressalta aspectos bem diversos do título original, cuja tradução direta do alemão enuncia “Cada um por si e Deus contra todos”. Enquanto a versão brasileira destaca a atmosfera misteriosa relativa ao personagem principal da obra, o original alemão parece sugerir, já de cara, uma perspectiva social e religiosa como forma de concebê-la. As reflexões deste texto esperam tocar apenas superficialmente nos aspectos sociais e de religião. Tendo como fundamento conceitos da psicanálise, elas partem de dois vértices distintos. O primeiro trata do desenvolvimento psíquico do protagonista, apresentado como, até então, alguém privado de contato humano, a partir de sua ‘aparição no mundo’. O segundo faz uso da estética e retoma alguns sentimentos produzidos no expectador e nos demais personagens, relacionando-os a ideias sobre a natureza do processo psicanalítico e da mente humana.
Logo de início, a plateia é introduzida à problemática do filme, através de um breve escrito e de uma frase um tanto perturbadora: “Esses gritos assustadores ao redor são o que chamam de silêncio”? As cenas iniciais parecem transportar o expectador para um passeio bucólico, de canoa pelo rio, de paisagens tranquilas e naturais, até que imagens de um homem adulto, acorrentado ao chão, sujo, de vestes surradas, a emitir sons e grunhidos incompreensíveis e a manusear um pequeno cavalo de brinquedo, ‘borram’ a sensação de quietude do momento. A realidade surge como um grito assustador a perturbar o silêncio da paisagem idílica. Aquele ser e aquelas condições de existência dizem mais de como vivem animais em cativeiros; nada sobre como vivem os humanos. Sua aparição, nos primeiros instantes, prenuncia toda uma inquietação vivenciada pela comunidade que o acolhe. A sequência de imagens das casas, de uma vila vazia, de pessoas imóveis nas janelas parece transmitir a mesma sensação de silêncio e inércia, cujo ocaso já se anunciara.
Aos poucos, as pessoas da comunidade se vão acercando em torno do ‘estranho ser’ e a curiosidade pelo mistério constitui o fundamento de toda aquela movimentação. Ele fora encontrado numa praça: livro de orações de uma mão e uma carta anônima na outra, a esclarecer a turvação de suas origens. Acumulam-se olhares, indagações, registros e protocolos. Depressa se descobre que, a despeito da passividade do homem e de sua ausência de fala – ele mais parece um boneco moldável, de fácil manipulação, a repetir de maneira estereotipada o que se lhe é dito – ele se mostra capaz de escrever algo. Kaspar Hauser, identificam-lhe, então, um nome. Do alemão, Hauser significa ‘casas’. Kaspar, em português seu equivalente é Gaspar, tem significado bastante revelador quanto ao que representaria o personagem naquela estória. Nome comum na Alemanha, Kaspar significa ‘o portador de tesouros’, ‘aquele que leva tesouros’, ‘aquele que vem ver’.
Um vértice a ser tomado para analisar a película é, de fato, a observação de como as interações de Kaspar com aquele grupo de pessoas se vão desenvolvendo e produzindo efeitos mútuos. Além de se lhe terem atribuído um nome, próprio, seus comportamentos, sentimentos, necessidades lhe vão sendo gradualmente nomeados também. Dizem sobre ele, em sua presença: “É evidente que ele nunca se sentou à mesa”; “ele sempre come pão”; “ele não gostou da sopa”; “o copo está vazio”; “o copo está cheio”. Kaspar vai podendo tornar-se cônscio de uma série de elementos acerca de si mesmo, antes inacessíveis para ele. Em outras palavras, ele vai podendo construir uma mente: um mundo de representações psíquicas que lhe servem de instrumento para conhecer a si e ao mundo. Ele passa a saber dar nome às partes do corpo; tenta aprender alguns versos infantis os quais lhe são definidos ‘muito complexos para ele ainda’. Não à toa são as crianças quem mais despontam na função de ensinar esses conceitos. Elas vivenciam as mesmas experiências e só há pouco adquiriram as primeiras representações mentais. Elaboram ativamente o que fora experimentado apenas de forma passiva na relação com os pais e demais adultos. Kaspar parece realizar o mesmo nas cenas onde aparece alimentando um passarinho; ou ‘fazendo de bípede’ um gato; ou ainda quando segura um bebê. A construção de um mundo representativo passa a ser vivida também como a possibilidade de interagir, de maneiras cada vez mais diversificadas, com a realidade e transformá-la, para muito além de ser somente nutrido ou de emitir ruídos incompreensíveis com um cavalo de brinquedo. A psicanálise – e Bion confere destaque especial à questão com seu conceito de reverie – enfatiza a necessidade de um outro ser humano para ‘criar’ um ser humano, para ‘humanizá-lo’, emprestando-lhe um cabedal de representações adequado e útil para enriquecer e complexificar seu potencial de interagir e transformar sua realidade.
Pari passu à expansão do mundo representacional, Kaspar vai podendo ter acesso a uma gama maior de experiências emocionais, no contexto do convívio com as pessoas. Significativa é a cena na qual segura um bebê e chora, falando à ‘mãe’ do desprezo sofrido pelos outros. No instante anterior, fora zombado por um grupo de jovens com uma galinha, mas talvez ali também falasse, e se faz notória a identificação com o bebê, à sua outra mãe, a primeira, por quem fora desprezado e desamparado tão cedo na vida. As expressões de crescimento no contato humano contrastam com outras, ao longo do filme, em que Kaspar parece evocar os tempos de calabouço. Quando foge, ao ser colocado ao lado de animais e ‘outros enigmas’, como atração circense, é encontrado escondido, encerrado dentro de um diminuto cubículo. Também quando feito de adorno a um lorde inglês de traços afetados e vaidosos, ele volta a manifestar sinais de seu comportamento primitivo e protesta: ‘melhor do que aqui fora’, ao ser questionado sobre a vida no cativeiro. Freud e a psicanálise esclarecem sobre a tendência do aparelho psíquico em retornar a estádios anteriores da mente, com o fim de proteger-se de contextos atuais com potencial de gerar angústia. No calabouço, era mais simples a vida de Kaspar e, embora ‘mais simples’ tenha o sentido de mais precária, de um lado, acaba por ter o sentido de prevenir as agruras inevitáveis do amadurecimento e das relações com os ‘lobos-homens’, de outro.  
Com o personagem do Sr. Daumer, esses contrastes ficam também expostos. Junto a ele, Kaspar desenvolve notáveis habilidades cognitivas – melhora sua escrita; passa a redigir cartas e sua autobiografia; aprende a tocar piano; come, à mesa, com talher. Entretanto, o Sr. Daumer não se parece situar tão sensível e disponível às expressões afetivas de Kaspar, como seu interesse o coloca em relação aos propósitos dos ganhos em cognição. Aliás, como ensina a psicanálise, mesmo os erros lógicos contêm em si significados da experiência emocional. Ao referir o ‘cansaço, a teimosia e a esperteza da maçã’ é certo que Kaspar fazia uso destas representações para expressar a si próprio, seu mundo psíquico, seu cansaço e desejo de ir de encontro ao que lhe era designado. Em outro momento, ao contemplar de fora a torre onde morara, anuncia que esta não podia ser a mesma, pois a outra era muito maior: de seu interior, de onde quer que se olhasse, somente ela se via. Talvez ali o encolhimento da torre representasse as muitas perdas vivenciadas no processo de seu amadurecimento psíquico, como acontece às crianças, em geral, nas transições à vida adulta. O Sr. Daumer, a despeito do grande valor de seu interesse pela educação de Kaspar, valor este determinante para o crescimento do personagem, chegava mesmo a censurar-lhe as queixas. Não sem alguma dose de ironia, uma figura de linguagem bastante presente na obra, ele aponta um jovem apático, afetivamente embotado, como exemplo a ser seguido de alguém submetido aos piores infortúnios sem reclamar.
O outro vértice escolhido para analisar a película considera aspectos da estética, os sentimentos despertados em expectador e demais personagens junto à Kaspar, à luz de reflexões relacionadas à natureza do processo psicanalítico. Freud, em 1919, escreve um artigo, cujo título em português ‘O estranho’, toma como objeto justo um tema da estética – a sensação de estranhamento e horror diante de fenômenos específicos – e o faz associar a conceitos já reconhecidos pela psicanálise, como o retorno de conteúdos reprimidos, da ameaça de castração e de padrões de funcionamento psíquicos há muito superados na maturidade. Que Kaspar provoque sentimentos de estranheza e mistério, o próprio título de ‘enigma’ o enuncia, embora o caráter de horror, neste caso, se mostre ausente desde o início. É provável que a passividade do personagem, aliada às circunstâncias bem peculiares de sua origem e desenvolvimento, expliquem a dificuldade do público, em geral - exceção óbvia às crianças do filme - em identificar-se com ele, em identificá-lo como um semelhante. Tratam-no, com maior frequência, como uma aberração, uma criatura pitoresca a ser examinada em protocolos minuciosos, a ser exposta para entretenimento e zombaria; nada que ver com gente, de fato.
Além de trazer à tona, no entanto, características psíquicas superadas no adulto, Kaspar reflete a marca da ignorância universal quanto a própria origem, seja no âmbito pessoal seja no âmbito da filogênese. Ele revela a condição inexorável do desamparo humano, de sua mórbida fragilidade frente a este desamparo, no caso dele, um desamparo concretizado ao longo de toda uma vida. Nada mais hostil e pesado à vaidade dos homens, sempre esforçados por crer em seu poder e racionalidade. Nada mais compreensível fugir ao horror de se perceber frágil e ignorante, imputando a Kaspar essas virtudes inumanas; ou mesmo doutrinando-o a todo custo. A atualidade e a história se locupletam dos mais variados exemplos de destituição (e destruição) daqueles considerados diferentes, bizarros e inferiores, tão somente por se nos apresentarem como a nossa imagem que desejamos esquecer.
Um outro sentimento digno de exame na obra guarda relação com o mistério e a curiosidade que a existência idiossincrática de Kaspar produz. Tem-se a sensação de um algo inacabado, inconcluso, como em uma narrativa na qual se ficam questionando os sentidos. Talvez o filme termine como a estória de seu personagem, cujo relato lhe fora vedado até que ele pudesse lhe agregar um desfecho. Em seu leito de morte, Kaspar finalmente pode revelar o conto ‘só com o começo’: sobre um deserto; sobre um cego capaz de perceber o que ninguém mais vê; sobre ilusões e montanhas ilusórias que ocultam a oportunidade de novos destinos. Decerto essa sensação de inconclusão se traduz em desconforto. Afinal, quem é este ‘estranho ser’? É com ironia novamente que a questão evolui nas últimas cenas. O personagem dos protocolos, de presença recorrente no desenrolar da trama, sempre com toques irônicos sutis, comemora, triunfante, o registro perfeito do que seria a explicação definitiva para o estranho personagem. Uma explicação anatômica, fruto de cuidadosa autópsia. A ironia denuncia a futilidade da resposta; denuncia a futilidade humana em sua busca por explicações racionais, lógicas, concretas e derradeiras, com o intuito de apartar-se, outra vez, da ignorância. Kaspar constitui-se muito mais como uma pergunta. Um devir; um eterno vir a ser. Um começo, sem um final conhecido, com exceção à própria morte, como em todo homem.
Mas ainda há mais a se dizer sobre sua comunicação última, a sua estória só com o começo. Bion, em seus textos psicanalíticos, reflete sobre o potencial transformador de novas representações para o aparelho psíquico. Para este autor, o vazio, o nada, se compõe de infinitos pensamentos não pensados, a espera de pensadores. O surgimento de uma nova ideia implicaria numa ruptura do equilíbrio inercial da mente, cujos efeitos, irreversíveis para o agente pensante, se fazem notar por meio de perturbações marcantes de seu estado emocional. Kaspar, como ‘o portador de tesouros’, é justo aquele cuja aparição provoca toda uma agitação na paisagem tranquila e imóvel da comunidade. Como ‘aquele que vê’, representa o cego de sua estória, que desvela as cidades escondidas por detrás de ilusórias paisagens desérticas; que desvela os gritos assustadores contidos no silêncio. Ele realiza em si próprio, como expressão de sua humanidade, o constante e infindável processo de construir e reconstruir novas formas de se representar, sempre se perturbando, se ampliando, se transformando, a partir do convívio com o outro humano. O contexto do atentado o qual fatalmente o vitima parece marcar o fato de seu desenvolvimento pessoal: a carta encontrada no local do atentado, ao contrário da primeira que segurava no instante de sua aparição, está assinada, pois já agora, Kaspar era capaz de descrever seu agressor.
Também o processo psicanalítico se define pela ‘aparição’ de novas representações, imagens, ideias, novas formas e vinculações de pensamento, tanto pelo analisando quanto pelo analista, com a propriedade de produzir disrupções e transformações nas existências de ambos. É como uma espécie de começo, de onde o novo, indefinido, pode advir. O enriquecimento psíquico dele resultante, assim como demonstra Kaspar, vai conferindo aos sujeitos acesso às infinitas possibilidades de se fazer representar e de modificar as realidades experimentadas.