sábado, 4 de julho de 2020

As vitrines



Eu te vejo sair por aí
Te avisei que a cidade era um vão
-Dá tua mão
-Olha pra mim
-Não faz assim
-Não vai lá não
Os letreiros a te colorir
Embaraçam a minha visão
Eu te vi suspirar de aflição
E sair da sessão, frouxa de rir
Já te vejo brincando, gostando de ser
Tua sombra a se multiplicar
Nos teus olhos também posso ver
As vitrines te vendo passar
Na galeria
Cada clarão
É como um dia depois de outro dia
Abrindo um salão
Passas em exposição
Passas sem ver teu vigia
Catando a poesia
Que entornas no chão


‘As vitrines’ é das músicas de Chico de que mais gosto. Impressiona a habilidade do compositor em construir personagens tão complexos sob a estrutura de versos e canções. ‘As vitrines’ me parece falar de um personagem assim e tipicamente um ‘voyeur’. Voyeur, na verdade, constitui o termo atribuído aos praticantes do ‘voyeurismo’ ou ‘escopofilia’, um tipo de perversão sexual, na qual o gozo, o prazer sexual, é obtido pela ação de ‘ver’, de ‘olhar’ os órgãos ou comportamentos sexuais alheios. De preferência, uma ação de ver insuspeitada, sem que o outro a perceba. Um olhar invasivo e desautorizado, de fato.
A música é permeada de expressões verbais com referências diretas e indiretas à ação do olhar, do primeiro ao último verso. ‘Eu te vejo; Olha pra mim’; ‘Embaraçam a minha visão; ‘Eu te vi suspirar...’; ‘Já te vejo brincando...’; ‘Nos teus olhos também posso ver as vitrines te vendo passar’; ‘Passas em exposição’; ‘Passas sem ver teu vigia. Os leitores poderiam retrucar: mas não se percebe nenhuma referência a órgãos ou comportamentos sexuais na letra. Do contrário, o personagem da música parece trazer mais um sentimento de queixa, de pesar, enquanto observa os movimentos da mulher amada.
Sim e aí entram alguns conceitos importantes emprestados pela psicanálise. Nosso personagem não seria um perverso clássico, dos que se masturbam, às escondidas, espiando frestas de portas e janelas de seu objeto de desejo. Ele seria mais uma espécie de ‘voyeur às avessas’, ou um ‘voyeur negativo’, como talvez diria Freud, quando teorizou que as neuroses corresponderiam ao ‘negativo das perversões’. O sujeito de ‘As vitrines’ seria, então, um neurótico, cuja única maneira de obter alguma quota de satisfação sexual (e aqui entenda-se o sexo não em seu sentido concreto, mas da maneira ampliada, conforme introduzida pela psicanálise) é ligando-se ao prazer ‘pelo seu lado negativo’, ou ‘pelo lado do contrário’. E por qualquer razão desconhecida, nosso personagem o faz através do ato de ver, olhar e espiar, inadvertidamente e sem plena ciência de seu objeto sexual, a mulher da canção.
Tal mecanismo, em psicanálise, de tomar ‘pelo lado negativo’ ou ‘pelo lado contrário’ pode ter sentidos bastante diversos. Sem dúvidas, ele parece disfarçar, ocultando o sentido do prazer sexual até mesmo para o próprio sujeito, que se faz mais consciente do lado do pesar e do sofrimento. Ele ‘disfarça’, ainda que a expressão da satisfação se faça notar de outras formas. ‘Algum ganho’ se pode suspeitar pela fixidez com a qual ele se liga ao ato e ao objeto, traduzida nas múltiplas variações do ‘ver’ e do ‘olhar’ a mulher amada, e na repetição monótona dessas ações, dia após dia, intuída no verso ‘cada clarão é como um dia depois de outro dia’. E a atmosfera de encantamento e adoração que a canção transborda parece também denunciar o sintoma de apaixonamento. Do nosso personagem por sua mulher amada, mas também o nosso próprio apaixonamento – nossos, dos ouvintes-expectadores - por ambos os personagens e pelas estórias que as cenas desenrolam. Quase podemos ‘ver’ mesmo as cenas – a cidade, a sessão de cinema, as vitrines, a galeria, um personagem à sombra a seguir os passos de uma mulher vistosa, dona de si e de seus movimentos. Somos levados a ‘nos encantar’ com os cenários urbanos e, de repente, somos nós quem desfrutamos voyeuristicamente dessas imagens.
E como não se encantar desse amor aparentemente tão incondicional, humilde e submisso, que parece mais do que tolerar, até mesmo adorar cada passo, cada movimento do objeto amado? E se, como é, de fato nos encantamos, então talvez compartilhemos, pelo menos enquanto ouvimos os versos e acordes da canção, da mesma neurose de nosso personagem. Um tipo de apaixonamento assim, que remete a graus intensos de platonismo, parece consistir em traço humano e universal. Um encantamento de tal monta por um amor assim poderia expressar uma espécie de desejo em ser amado ou amar dessa forma? Em acreditar nesse tipo de amor?
Na canção a mulher parece ser a dona dos movimentos. O sujeito, encantado, apenas a olha e segue por aí, pelas ruas da cidade. Ela é quem decide o que fazer, para onde ir. Nosso personagem parece resignar-se passivamente ao destino trágico dos enamorados platônicos de ‘catar a poesia’ que o outro entorna no chão. Ele parece estar ao chão, como as sombras multiplicadas. Ora, um dos sentidos do disfarce neurótico então não poderia ser este, de disfarçar as ações do próprio sujeito? De disfarçar a intencionalidade de seu olhar e esconder, numa imagem de amor puro e ideal, o prazer e o gozo sexual que ele frui? Ao posar de amante resignado à sombra, não estaria ele talvez temeroso de que suas intenções viessem à luz? Ou mesmo não poderia ele temer assumir a posição de sujeito e arriscar ‘ser visto’ pela sua amada?
Nosso personagem não ama a mulher real da canção. Ama a mulher que esta representa e que habita as instâncias ideais de sua mente. Ama a sua própria ideia de mulher ideal, portanto. Perigoso seria aproximar-se dessa mulher real, de fato, e quem sabe descobrir que a mulher idealizada não existe. E ainda mais: que ele mesmo, a fonte daquele amor puro e desinteressado não pode existir em uma relação humana. Prefere viver só, à sombra, escondido e submisso, a descobrir a existência de um outro diferente da própria ideia ideal que guarda de si. Existir como sombra de seu objeto sexual pode conferir-lhe alguma satisfação no encantamento que aufere do objeto e de si mesmo nesse papel, além de proteger-lhe de descobertas bastante dolorosas. Uma solução com a qual nós, neuróticos e avessos às ‘perversões’, com frequência desejosos dos disfarces ‘mais puros’, ainda mais se nos prometem amores incondicionais e livres do risco das separações reais, costumamos simpatizar.
‘Ah, mas na primeira estrofe o sujeito tenta se aproximar da mulher, suplicando-a que o veja, que não se vá, então ele tenta se aproximar dela’. A primeira estrofe, na verdade, parece trazer falas apenas do sujeito, de maneira que há dúvidas se se trata de um diálogo genuíno ou de um monólogo interior. Mesmo que o sujeito se dirigisse diretamente à amada, a forma de seu relato ratifica a concepção de seu objeto como algo inalcançável, sempre escapável e, portanto, ausente como realidade. Um diálogo concreto na primeira estrofe não modifica os papeis e os sentidos do objeto para o sujeito, enquanto vivenciados por este. Ele se mantém à sombra, passivo, encantado. A intuição mais precisa sugere que ele nem mesmo se percebe escutado pela amada. E sendo este o estado das coisas, fica difícil falar de aproximação com o objeto e de um diálogo.
Nesse sentido, ‘As vitrines’, enquanto título da canção, parece também fazer referência a uma espécie de existência na qual ‘só se vê passar’. O sujeito mesmo fica preso na redoma neurótica de suas fantasias e encantamentos.              

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