segunda-feira, 10 de agosto de 2020

‘A monster calls’ ou os sentidos do chamado psíquico




Um dos mais importantes psicanalistas da atualidade, Wilfred Bion, propôs um questionamento acerca do valor atribuído aos sonhos sonhados enquanto dormimos. Para ele, deveria haver algum sentido psíquico para a atitude geral de desqualificar as realidades vivenciadas nos sonhos.   

Freud, ao fundar a psicanálise em 1900, postulou que os sonhos constituiriam um meio pelo qual o psiquismo realizaria os desejos não realizados durante a vida de vigília. Um sentido proposto por ele para a tendência de esquecermos facilmente dos sonhos – e talvez também para a atitude de subestimar seu valor – consistiria nas consequências psíquicas de ficarmos conscientes de nossos desejos e frustrações.

Alguns sonhos, no entanto, parecem lutar contra essa tendência de serem esquecidos e se impõem, com insistência, no nosso dia-dia. Na onda de tantos outros filmes e obras artísticas, ‘A monster calls’ destaca-se por colocar as vivências oníricas no centro da narrativa, trazendo à tona correlações de sentido entre elas e a vida de vigília.

O personagem principal, Conor O’Malley, um pré-adolescente inglês, tem um recorrente pesadelo: seu mundo está desmoronando, enquanto segura, desesperado pela mão, a sua mãe, prestes a precipitar-se num abismo. Conor acorda sempre neste ponto e, como não pudesse sonhar o restante do sonho, não mais consegue voltar a dormir.

Também se nos apresenta a vida acordada de Conor. Nas primeiras cenas, ele aparece como um jovem prestimoso, a fazer o próprio café e cuidar da casa. Sua mãe sofre de câncer, embora ele expresse intensa confiança em seu tratamento e recuperação. Na escola, é vítima do assédio e violência de alguns colegas de classe e parece responder passivamente a essas investidas. Há ainda a figura da avó cujas intervenções junto à condição da mãe lhe provocam sentimentos de raiva e irritação.

A narrativa vai evoluindo a partir da influência sobre Conor de uma outra experiência onírica. Um monstro assustador, sob a forma de uma árvore, surge-lhe - em devaneio, uma espécie de sonho acordado - com a intenção de contar a ele três estórias e a exigência de que, ao final, Conor lhe revelasse a quarta, a estória de seu pesadelo. De início, o jovem zomba do monstro, fruto de seus sonhos e imaginação. Mas ouve, de réplica, a seguinte pergunta: ‘como saber se a própria vida vivida não é também um sonho’?

A sinopse e a pergunta podem até dar a impressão de que ‘A monster calls’ trata-se de um filme bobo para crianças. As profundas experiências emocionais vividas por Conor refletem o oposto. O expectador fica tomado por elas através das diversas dimensões dos sonhos do personagem: seu pesadelo durante o sono, seus devaneios e sua vida acordada.

Vai ficando evidente, por exemplo, que o otimismo do jovem com o tratamento da mãe não se mostra tão inquestionável como parecia. Embora não pareça admiti-lo mais diretamente, algumas expressões de Conor dão sinal de sua desconfiança. Ele pergunta mais de uma vez à mãe, por exemplo, se ela não lhe gostaria de contar alguma coisa.

A figura da avó, no entanto, parece concentrar mais os sentimentos de desconfiança e hostilidade do menino. Psicologicamente, talvez ela representasse melhor os riscos relacionados ao adoecimento materno, com suas constantes e rígidas intervenções. A perspectiva de perder a mãe e ir morar com a avó era difícil de ser encarada e Conor a repelia com irritação. Seu pai, por outro lado, parecia-lhe amoroso e compreensivo, mas o jovem se ressentia de não encontrar espaço no ‘outro país’ onde o pai morava com uma nova família.

O amadurecimento do personagem e sua ‘revelação final’ vai sendo construída na relação com o ‘monstro’ de seu devaneio. A recusa e o medo iniciais vão dando lugar à demanda – Conor passa a desejar as conversas com o ser fantástico. As estórias contadas por ele aparecem permeadas de paixões, perdas e personagens complexos, que não são o que aparentam ser, afinal. ‘As estórias são criaturas selvagens’, adverte o monstro, e aquelas, contadas entre os dois, já estavam produzindo efeitos sobre o garoto.

Passamos a acompanhar as transformações do personagem. Sua agressividade, antes mais contida, agora expressa-se com intensidade. Ele destrói a sala cheia de relíquias da avó. E esmurra seu colega abusador, mandando-o para o hospital. O jovem prestimoso e passivo vai podendo vivenciar outras experiências, outras maneiras de ser ele mesmo. Vai se dando conta também de seu desejo de punição e da complexidade dos sentimentos e das estórias que o habitam. É quando a parte do sonho não sonhado, aquela mesma interrompida de seu pesadelo, vai podendo ser vivida.

A atitude compreensiva do monstro e dos outros personagens de seu sonho desperto contribuem para que Conor vivencie suas novas experiências de uma forma menos ameaçadora. O enunciado final de seu pesadelo, até então não sonhado o coloca definitivamente diante do ‘monstro’ que tentava evitar: ele mesmo e o desejo de livrar-se da incômoda mãe adoecida. Dar-se conta de uma representação tão desagradável de si não acontece senão com muita dor. O monstro, porém, já não assusta mais tanto e, consolado por ele, Conor pode enfim perceber-se como o ser completo e contraditório do humano.

E pode ficar livre para sonhar outros sonhos. O pesadelo, afinal, era apenas uma parte de si tentando exprimir-se contra uma resistência do tamanho da dor que prenunciava. Conor podia estar agora mais diante da realidade da perda de sua mãe. Estava mais seguro de seu amor por ela, pois agora conseguia experimentar e compreender mais os sentimentos hostis que sentia também por ela. E dela pôde se despedir.

De uma outra perspectiva, a parte não sonhada do pesadelo comunicava a Conor a impossibilidade de ele ‘salvar’ a mãe. Ela punha termo à onipotência infantil e à ilusão de conservar o laço edipiano materno, tão universal às crianças e conhecido da psicanálise. Depois do adeus, seguimos Conor em sua nova vida, seu novo quarto (o mesmo da mãe quando criança?), com as lembranças maternas como prova de que ela estaria presente na vida dele, não materialmente e sim como imagem a acompanhá-lo por suas próximas estórias.

Uma questão fica: o que seria esse ‘monstro que chama’, que parece reivindicar atenção?

Freud entendia as imagens oníricas como um produto condensado de várias outras imagens e experiências emocionais distintas. Talvez o monstro representasse o pesadelo e sua recorrência, seu clamor por expressão. Talvez representasse a onipotência do menino, desejoso de ‘ser poderoso’ para curar a mãe. Quem sabe fosse a própria agressividade contida ou o anseio por uma figura paterna forte e protetora a guiá-lo num período de aflição. Ou, como referido, esse monstro fosse ele mesmo, sua parte que queria ‘matar a mãe e seu sofrimento’; sua parte que representava o fracasso da onipotência e a renúncia dos desejos edípicos.

Como as imagens oníricas, também as pessoas e coisas da vida desperta funcionam na mente como representantes de nossas experiências emocionais. Nesse sentido, a vigília não parece tão diferente dos sonhos. ‘A monster calls’ é, na realidade, um grande chamado para que se preste atenção à vida psíquica. Em toda sua grandeza e monstruosidade.   

A psicanálise faz o mesmo chamado. Todo bom analista é como um monstro a apresentar ao sujeito suas partes dolorosas, que não podem ser sonhadas e, por isso, ‘cobram’ apreciação. Nas cenas finais do filme, Conor descobre seu monstro nos cadernos e nas estórias da mãe-criança. E fica no ar outras perguntas: será que ela, de alguma maneira, transferiu para o filho sua capacidade de sonhar? Seria o monstro também uma representação dessa capacidade?

Essa é toda a esperança de uma análise. Transferir para um outro a capacidade de sonhar os sonhos não sonhados. Como no desenho último, sujeito e monstro abraçados.   



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