(Direção: Kenneth Lonergan)
Talvez a
primeira ideia sobre o filme o defina como um filme de fácil compreensão. E é
bem assim mesmo. A sequência de oito minutos de ópera como pano de fundo para
as cenas reveladoras do trágico destino de Lee Chandlers, justapostas quase
como de surpresa na metade da película, parecem iluminar nossa capacidade de
entender o personagem; tanto nos rumos tomados por ele, após acidentalmente
causar o incêndio de sua casa e a morte dos três filhos, quanto no desenrolar
de suas relações com o sobrinho Patrick, cujo pai afinal falecera da grave
condição cardíaca que o acometia, deixando a Lee a responsabilidade e as
condições de tutorar o sobrinho menor de idade. Karl Jaspers, em seu clássico Psicopatologia geral, pontua que para se
realizar uma compreensão psicológica faz-se necessário que uma conexão
compreensível evidente – na situação em vista, o possível impacto de um trauma
de tal magnitude – se comprove a partir de dados objetivos da realidade no caso
particular. Quando, em depoimento na delegacia, Lee se espanta de não ser
levado preso e, em seguida, rouba a arma de um policial e a aponta para a
própria cabeça, prenuncia o que fará de sua vida daí em diante. Prisão e morte
psíquica.
São dados objetivos
reais do impacto da experiência traumática, determinantes de compreensão
imediata, o cubículo no qual se enfiou – quase sem mobília, não fosse a
intervenção de seu irmão; o trabalho exaustivo de faz-tudo em quatro prédios,
retratado, por vezes, como degradante e provavelmente inferior às suas
capacidades; a inibição frente à possibilidade de investir em relacionamentos
amorosos, afetivos ou sexuais; a recusa ao gozo, de uma forma geral, intuída da
expressão facial quase sempre congelada, da escassez de gestos e palavras e da
quase total ausência de sorrisos, que em muito contrastam com o Lee de antes da
transformadora tragédia; o comportamento beligerante de quem parece buscar
oportunidades de ser agredido; a dificuldade de permanecer em Manchester, onde
as esquinas o defrontam a todo instante com sua dor; e a impossibilidade de
responsabilizar-se pelo objeto de seu afeto, Patrick, tão bem representada na
fala ao sobrinho, eu não consigo superar.
A nosografia
psiquiátrica oferece a descrição de um quadro clínico reativo a experiências de
trauma psicológico intenso. O Transtorno de Estresse Pós-Traumático foi
originalmente observado em sobreviventes de guerra e constitui forma crônica de
sofrimento mental caracterizada por uma constante atualização do trauma na
vida, ao passo que, ao mesmo tempo, se tenta resistir a essa atualização com
mecanismos para evitar os estímulos relacionados à vivência dolorosa. É assim
que um sobrevivente de guerra, sofrendo do mal, se vê atormentado por
lembranças recorrentes de cenas bélicas, com tiros e bombas, e não pode escutar
barulho de fogos de artifício, por exemplo. Em Lee, a atualização vai além da
simples revivescência do trauma em sonhos ou da dificuldade de se postar em
Manchester. O trauma incrusta-se nele, de maneira profunda e definitiva, dentro
do próprio eu, devastando o que, afinal, o submeteria à ameaça de novas
experiências dolorosas de culpa e perda. O trauma lhe devasta a capacidade de
amar.
Lee se nos
apresenta, desde o início do filme, como um cadáver não morto daquele incêndio
involuntariamente produzido por ele, tal como aparecem os traumatizados de
guerra sobrevividos de sangrentas batalhas. Vive em outra cidade sem qualquer
expressão de laço afetivo a ligá-lo a alguma coisa. Entope-se de um trabalho
que, longe de representar ou servir ao desenvolvimento de um projeto pessoal, mais
funciona como estratégia para desinvestir qualquer ideia ou possibilidade de
sonhar. Amar é, indubitavelmente, correr riscos. Quem ama, investe, cuida,
preocupa-se e, com mais frequência do que se quer admitir, sofre, frustra-se,
chora-se a perda de sonhos e expectativas. Freud escreve, em Sobre o narcisismo: uma introdução, de 1914,
que ‘um egoísmo forte constitui uma
proteção contra o adoecer, mas, num último recurso, devemos começar a amar a
fim de não adoecermos, e estamos destinados a cair doentes se, em consequência
da frustração, formos incapazes de amar’. O personagem Lee, arrasado pela
dor, se torna incapaz de amar e adoece. Adoece de um mal, tal qual define André
Green com o conceito de Narcisismo de
morte, que corresponde, de forma precisa, ao desinvestimento nos objetos e
à repetição compulsiva de um modus
operandi, na vida, a anular novas oportunidades de ligação afetiva. Fechando-se
em seu narcisismo, Lee se protege das dores de novos amores e, de sua
incapacidade de amar, cai doente, como teorizou Freud.
Um aspecto
também presente nos efeitos da vivência traumática para o psiquismo de Lee
consiste na extensão assumida pelo sentimento de culpa e a necessidade de expiá-lo
na realidade exterior. Em adição às inúmeras e intensas restrições
inconscientemente autoinfligidas, o personagem é mostrado procurando situações
de embate físico, das quais lhe sobrevêm, muitas vezes, lesões corporais
significativas. Significativas, além do mais, por realizarem um sentido
masoquista, de autopunição. Freud novamente, em O Ego e o Id, de 1923, descreve como a chamada pulsão de morte pode
alimentar o componente sádico do superego, a instância psíquica responsável por
uma espécie de masoquismo moral, quando a mente busca situações de sofrimento
como forma de expiar a culpa. A vida de Lee, no seguimento das irreparáveis
perdas, pode ser compreendida ainda com essa perspectiva de uma pena
autodeterminada, como a prisão e morte psíquica anunciadas na cena do
depoimento na delegacia.
Digna de nota
é a profunda delicadeza na construção de algumas cenas. Não à toa, direção e
elenco receberam vários prêmios, incluindo seis indicações ao oscar e as
estatuetas de melhor ator – Casey Affleck – e roteiro original. A sequência de
cenas trágicas, com a ópera ao fundo intitulada Adagio per archi e organo in sol minore igualmente trágica,
configuram exemplo de bela combinação de música e imagem no cinema. E a cena do
diálogo entre Lee e a ex-esposa Randi, quando ela, ao apresentar-lhe o filho
nascido de outra relação, pede-lhe desculpas pelas ‘coisas horríveis’ ditas no
passado, magistralmente interpretada, expressa com realismo raro os conflitos e
constrangimentos vivenciados por ambos naquele encontro.
Mais forte, no
entanto, imediatamente acabada a sessão do filme, é o sentimento de frustração diante
da negativa final de Lee quanto à paternidade de Patrick, na sentença
definitiva – ‘eu não consigo superar’.
O sobrinho acabara de perder o pai e, no decorrer das incertezas sobre o
futuro, fracassa na tentativa de estabelecer vinculação com a mãe, que tinha
problemas com o álcool e, de criança, o havia abandonado. Patrick, um
adolescente de 16 anos, desde a infância, demonstrava afinidades com o tio e,
sendo assim, não lhe pareceu difícil transferir as demandas filiais a ele,
embora esbarrasse em suas constantes hesitações. O filme desenvolve-se justo no
encalço da relação de afeto entre os dois, e como não simpatizar com a causa de
Patrick e, no fim, sentir até uma raivinha do problemático Lee? Trata-se de uma
questão da qual, senão com dificuldades, se escapa.
E se pode
escapar exatamente graças à possibilidade de compreender Lee, a partir de como ele
estrutura a própria existência sob o domínio absoluto da experiência traumática.
Constitui uma lição da psicanálise, a distinção entre a ação de simpatizar – e o
óbvio correlato antipatizar – e a atitude definida pela empatia, uma medida da
capacidade compreensiva. A alternativa empática se perguntaria como, afinal,
poderia Lee conviver tão de perto com a responsabilidade de cuidar de alguém
amado se a sua vida se marcara, de maneira definitiva, pela dor de haver tão
terrivelmente fracassado na investida, causando a morte de três filhos; e ainda
em Manchester, cenário onde tudo aconteceu. A resposta empática à alternativa entenderia
o quão difícil seria para ele. Patrick, a despeito de sofrer com as hesitações
do tio, se mostra capaz de perceber o que com ele se passa. Aliás, o filme
revela instantes preciosos de mútua compreensão, quando, identificados os dois
pela dor da perda, se oferecem consolo e cuidado. É assim que Lee se posta ao
lado de Patrick no episódio do frango congelado, momento no qual o jovem se dá
conta, numa esfera mais emocional, do luto pelo pai. Ou quando Patrick abre mão
da diversão e companhia dos amigos para oferecer ajuda a Lee depois de este ter
sido espancado num bar. Esses instantes denotam a forte carga afetiva entre os
personagens e são a prova de ainda estar viva a mente de Lee e sua capacidade
de amar.
Assim se
engana quem pensa o filme com um final de todo frustrante. Porque é do amor
entre os dois e da possibilidade de se compreenderem um ao outro que se promovem
as primeiras mudanças na existência morta de Lee. Afinal aquele cubículo
inicial vai acabar ganhando um quarto extra. O trabalho exaustivo de quatro
prédios já não será mais tão exaustivo com somente dois. E, nas visitas e
projeto da faculdade de Patrick, a vida de Lee se encherá de um novo sentido,
um sonho, o da espera de um tempo futuro compartilhado.