sábado, 31 de março de 2018

Manchester à beira mar


(Direção: Kenneth Lonergan)


Talvez a primeira ideia sobre o filme o defina como um filme de fácil compreensão. E é bem assim mesmo. A sequência de oito minutos de ópera como pano de fundo para as cenas reveladoras do trágico destino de Lee Chandlers, justapostas quase como de surpresa na metade da película, parecem iluminar nossa capacidade de entender o personagem; tanto nos rumos tomados por ele, após acidentalmente causar o incêndio de sua casa e a morte dos três filhos, quanto no desenrolar de suas relações com o sobrinho Patrick, cujo pai afinal falecera da grave condição cardíaca que o acometia, deixando a Lee a responsabilidade e as condições de tutorar o sobrinho menor de idade. Karl Jaspers, em seu clássico Psicopatologia geral, pontua que para se realizar uma compreensão psicológica faz-se necessário que uma conexão compreensível evidente – na situação em vista, o possível impacto de um trauma de tal magnitude – se comprove a partir de dados objetivos da realidade no caso particular. Quando, em depoimento na delegacia, Lee se espanta de não ser levado preso e, em seguida, rouba a arma de um policial e a aponta para a própria cabeça, prenuncia o que fará de sua vida daí em diante. Prisão e morte psíquica.
São dados objetivos reais do impacto da experiência traumática, determinantes de compreensão imediata, o cubículo no qual se enfiou – quase sem mobília, não fosse a intervenção de seu irmão; o trabalho exaustivo de faz-tudo em quatro prédios, retratado, por vezes, como degradante e provavelmente inferior às suas capacidades; a inibição frente à possibilidade de investir em relacionamentos amorosos, afetivos ou sexuais; a recusa ao gozo, de uma forma geral, intuída da expressão facial quase sempre congelada, da escassez de gestos e palavras e da quase total ausência de sorrisos, que em muito contrastam com o Lee de antes da transformadora tragédia; o comportamento beligerante de quem parece buscar oportunidades de ser agredido; a dificuldade de permanecer em Manchester, onde as esquinas o defrontam a todo instante com sua dor; e a impossibilidade de responsabilizar-se pelo objeto de seu afeto, Patrick, tão bem representada na fala ao sobrinho, eu não consigo superar.
A nosografia psiquiátrica oferece a descrição de um quadro clínico reativo a experiências de trauma psicológico intenso. O Transtorno de Estresse Pós-Traumático foi originalmente observado em sobreviventes de guerra e constitui forma crônica de sofrimento mental caracterizada por uma constante atualização do trauma na vida, ao passo que, ao mesmo tempo, se tenta resistir a essa atualização com mecanismos para evitar os estímulos relacionados à vivência dolorosa. É assim que um sobrevivente de guerra, sofrendo do mal, se vê atormentado por lembranças recorrentes de cenas bélicas, com tiros e bombas, e não pode escutar barulho de fogos de artifício, por exemplo. Em Lee, a atualização vai além da simples revivescência do trauma em sonhos ou da dificuldade de se postar em Manchester. O trauma incrusta-se nele, de maneira profunda e definitiva, dentro do próprio eu, devastando o que, afinal, o submeteria à ameaça de novas experiências dolorosas de culpa e perda. O trauma lhe devasta a capacidade de amar.
Lee se nos apresenta, desde o início do filme, como um cadáver não morto daquele incêndio involuntariamente produzido por ele, tal como aparecem os traumatizados de guerra sobrevividos de sangrentas batalhas. Vive em outra cidade sem qualquer expressão de laço afetivo a ligá-lo a alguma coisa. Entope-se de um trabalho que, longe de representar ou servir ao desenvolvimento de um projeto pessoal, mais funciona como estratégia para desinvestir qualquer ideia ou possibilidade de sonhar. Amar é, indubitavelmente, correr riscos. Quem ama, investe, cuida, preocupa-se e, com mais frequência do que se quer admitir, sofre, frustra-se, chora-se a perda de sonhos e expectativas. Freud escreve, em Sobre o narcisismo: uma introdução, de 1914, que ‘um egoísmo forte constitui uma proteção contra o adoecer, mas, num último recurso, devemos começar a amar a fim de não adoecermos, e estamos destinados a cair doentes se, em consequência da frustração, formos incapazes de amar’. O personagem Lee, arrasado pela dor, se torna incapaz de amar e adoece. Adoece de um mal, tal qual define André Green com o conceito de Narcisismo de morte, que corresponde, de forma precisa, ao desinvestimento nos objetos e à repetição compulsiva de um modus operandi, na vida, a anular novas oportunidades de ligação afetiva. Fechando-se em seu narcisismo, Lee se protege das dores de novos amores e, de sua incapacidade de amar, cai doente, como teorizou Freud.
Um aspecto também presente nos efeitos da vivência traumática para o psiquismo de Lee consiste na extensão assumida pelo sentimento de culpa e a necessidade de expiá-lo na realidade exterior. Em adição às inúmeras e intensas restrições inconscientemente autoinfligidas, o personagem é mostrado procurando situações de embate físico, das quais lhe sobrevêm, muitas vezes, lesões corporais significativas. Significativas, além do mais, por realizarem um sentido masoquista, de autopunição. Freud novamente, em O Ego e o Id, de 1923, descreve como a chamada pulsão de morte pode alimentar o componente sádico do superego, a instância psíquica responsável por uma espécie de masoquismo moral, quando a mente busca situações de sofrimento como forma de expiar a culpa. A vida de Lee, no seguimento das irreparáveis perdas, pode ser compreendida ainda com essa perspectiva de uma pena autodeterminada, como a prisão e morte psíquica anunciadas na cena do depoimento na delegacia.
Digna de nota é a profunda delicadeza na construção de algumas cenas. Não à toa, direção e elenco receberam vários prêmios, incluindo seis indicações ao oscar e as estatuetas de melhor ator – Casey Affleck – e roteiro original. A sequência de cenas trágicas, com a ópera ao fundo intitulada Adagio per archi e organo in sol minore igualmente trágica, configuram exemplo de bela combinação de música e imagem no cinema. E a cena do diálogo entre Lee e a ex-esposa Randi, quando ela, ao apresentar-lhe o filho nascido de outra relação, pede-lhe desculpas pelas ‘coisas horríveis’ ditas no passado, magistralmente interpretada, expressa com realismo raro os conflitos e constrangimentos vivenciados por ambos naquele encontro.
Mais forte, no entanto, imediatamente acabada a sessão do filme, é o sentimento de frustração diante da negativa final de Lee quanto à paternidade de Patrick, na sentença definitiva – ‘eu não consigo superar’. O sobrinho acabara de perder o pai e, no decorrer das incertezas sobre o futuro, fracassa na tentativa de estabelecer vinculação com a mãe, que tinha problemas com o álcool e, de criança, o havia abandonado. Patrick, um adolescente de 16 anos, desde a infância, demonstrava afinidades com o tio e, sendo assim, não lhe pareceu difícil transferir as demandas filiais a ele, embora esbarrasse em suas constantes hesitações. O filme desenvolve-se justo no encalço da relação de afeto entre os dois, e como não simpatizar com a causa de Patrick e, no fim, sentir até uma raivinha do problemático Lee? Trata-se de uma questão da qual, senão com dificuldades, se escapa.
E se pode escapar exatamente graças à possibilidade de compreender Lee, a partir de como ele estrutura a própria existência sob o domínio absoluto da experiência traumática. Constitui uma lição da psicanálise, a distinção entre a ação de simpatizar – e o óbvio correlato antipatizar – e a atitude definida pela empatia, uma medida da capacidade compreensiva. A alternativa empática se perguntaria como, afinal, poderia Lee conviver tão de perto com a responsabilidade de cuidar de alguém amado se a sua vida se marcara, de maneira definitiva, pela dor de haver tão terrivelmente fracassado na investida, causando a morte de três filhos; e ainda em Manchester, cenário onde tudo aconteceu. A resposta empática à alternativa entenderia o quão difícil seria para ele. Patrick, a despeito de sofrer com as hesitações do tio, se mostra capaz de perceber o que com ele se passa. Aliás, o filme revela instantes preciosos de mútua compreensão, quando, identificados os dois pela dor da perda, se oferecem consolo e cuidado. É assim que Lee se posta ao lado de Patrick no episódio do frango congelado, momento no qual o jovem se dá conta, numa esfera mais emocional, do luto pelo pai. Ou quando Patrick abre mão da diversão e companhia dos amigos para oferecer ajuda a Lee depois de este ter sido espancado num bar. Esses instantes denotam a forte carga afetiva entre os personagens e são a prova de ainda estar viva a mente de Lee e sua capacidade de amar.
Assim se engana quem pensa o filme com um final de todo frustrante. Porque é do amor entre os dois e da possibilidade de se compreenderem um ao outro que se promovem as primeiras mudanças na existência morta de Lee. Afinal aquele cubículo inicial vai acabar ganhando um quarto extra. O trabalho exaustivo de quatro prédios já não será mais tão exaustivo com somente dois. E, nas visitas e projeto da faculdade de Patrick, a vida de Lee se encherá de um novo sentido, um sonho, o da espera de um tempo futuro compartilhado.      

segunda-feira, 5 de março de 2018

O caso Tiffany e os conflitos inerentes à inserção trans


Esses dias, um colega fez referência a certa conversa com uma mulher transexual. Na conversa, surgiu a questão de se as transexualidades, feminina e masculina, demarcavam nova classe de gênero humano ou se podiam encaixar-se, segundo convencional divisão social, entre homens e mulheres. A questão encontrou sentido em uma discussão recente envolvendo o mundo do voleibol. Tiffany, jogadora oposta do time do Bauru, estreou na superliga feminina, no último dia 10 de dezembro de 2017, como a primeira transexual a atuar no campeonato nacional mais importante da modalidade. E sua boa atuação impressiona: Tiffany apresenta média de pontos por partida superior à de Tandara, oposta do Osasco e da seleção brasileira, até então a melhor atacante da competição. A discussão entre expectadores, jogadoras, técnicos, profissionais ligados à medicina esportiva, entre outros, gira em torno de se o passado masculino de Tiffany conferiria a ela vantagens adicionais, em comparação com as demais jogadoras cis.  
Essa é uma discussão do momento. Vem ganhando força agora no voleibol, mas se espera que se desenvolva também em outras esferas. E, com o aumento gradual da visibilidade trans, galgado a duras penas pela luta popular e expresso na adoção crescente de políticas inclusivas, a inserção trans na vida cotidiana, qualquer que seja o cenário considerado, vem se fazendo não sem produzir incômodos, questionamentos, inseguranças, dúvidas. Trata-se de fenômeno social de maior potencial transformador. Transformações, mudanças, se dão, como se sabe, ao fundo de muitos embates, disputas, crise. O debate em relação à Tiffany talvez reflita a crise social, representada pela condição transexual, agora no âmbito do esporte. Faz-se interessante e necessário analisar como os questionamentos levantados acerca da performance da atleta expressam essa crise e prenunciam modificações profundas no binômio gênero-esporte.
Então, seguindo o problema, haveria diferenças de desempenho entre esportistas transexuais, e seus pares cis-genêro? Assim coloca-se, pois se pode levantar a mesma dúvida sobre os transexuais masculinos e os homens cis. E não deve ser por acaso que a discussão se tenha promovido pelo lado feminino. É principalmente aí onde a condição trans ameaça a ordem social estabelecida. Entre os homens, há o pressuposto compartilhado da superioridade atlética dos cis sobre os trans, para os quais se manteria o habitual estado de marginalidade, portanto. A resposta afirmativa à pergunta, como muitos supõem, traz o risco de, num futuro não tão distante, as mulheres cis serem preteridas em relação às trans, na prática de vários esportes de força e agilidade. Os clamores recentes de algumas jogadoras denunciam a situação de ameaça vivida. São clamores compreensíveis e legítimos. Lembram habitantes de uma localidade qualquer experimentando a expectativa de imigração em massa de estrangeiros. Temem por seus empregos; pela perda de espaços também duramente conquistados (a ocupação, por mulheres, de espaços, antes exclusivamente masculinos, constitui fenômeno recente da história).
Daí que também no voleibol, a transexualidade se apresente como um questionamento às fronteiras de gênero. Afinal, o que é ser mulher? O que é ser homem? Se antes se respondiam a estas perguntas a partir dos genitais e, em casos específicos, através de testes genéticos, hoje o problema é percebido cada vez menos como um destino biológico pré-determinado e cada vez mais como a ideia de um constructo representacional, influenciado pela evolução histórica da sociedade e seus produtos culturais. Compreende-se, então, um sujeito nascido com pênis e cromossomo Y identificar-se com formas representativas – corpo e papeis de gênero – daquilo que a cultura define por ‘feminino’, autodenominando-se ‘mulher’, e vice-versa. Embora a anatomia configure a base na qual um sujeito e sua identidade irá se constituir, ela perde a primazia em determinar a qual gênero o indivíduo pertence, podendo, inclusive ela, sofrer alterações estruturais para ajustar-se à ideia de identidade construída no âmbito da representação mental. Sendo assim, a mudança de um vértice biológico para um vértice psicossocial amplia consideravelmente a noção de gênero, confere-lhe maior diversidade e complexidade, ao abarcar, junto às pessoas cis, também as pessoas trans. Mas questionar e alargar fronteiras, tão profundamente delimitadas pelo homem, ao longo de todo seu desenvolvimento filogenético, nada poderia produzir senão contrarreações. No voleibol, as expressões de resistência à integração de Tiffany às jogadoras, na superliga feminina, ganham mais intensidade ainda frente à ameaça de que a jogadora transexual, por seu passado masculino, admita potenciais atléticos não compartilhados por suas congêneres cis. Diferenças de desempenho não são algo incomum no esporte; do contrário, configuram seu real motivo. Porque existem diferenças, elas podem ser aferidas em seu êxito ou fracasso. Mulheres baixas, por exemplo, exibem nítida desvantagem em relação às mais altas, fato corrente na atividade voleibolística. Não se notam protestos das baixinhas por espaço, pois, afinal, todas pertencem ao mesmo grupo, o das mulheres, e suas variações individuais estão reconhecidas e naturalizadas. Já no caso em evidência, fica mais interessante sublinhar o especificador trans, convertendo-o em uma espécie de gênero ou subgênero a parte, a margem, como se intui das propostas surgidas, na discussão, quanto à criação de uma ‘cota trans’ – o estabelecimento de um quantitativo restrito ‘permitido’ de jogadoras trans por time – ou mesmo quando se sugere a realização de uma competição ‘exclusiva’ para jogadores transexuais. A questão inicial do texto, sobre segregar as transexualidades das classes convencionais de gênero, pode ter sua resposta sujeita às conveniências de cada um, no lidar com essa chamada ‘crise de fronteiras’ da contemporaneidade.          
Mas, a despeito da superação do vértice biológico na problemática do gênero, superação esta que define a transexualidade, resta ainda a questão do corpo. Vencido, o corpo guarda ainda crucial relevância na necessidade, tão premente entre transexuais, de que ele reflita, na carne, os ideais de gênero configurados dentro do psiquismo. Cirurgias de mudança de sexo, cirurgias plásticas, tratamentos hormonais, todos se dispõem à realização deste êxito. No esporte, o corpo ocupa papel central também no desempenho de habilidades físicas de força, precisão e velocidade. A inclusão de atletas transexuais em modalidades de alto rendimento, sendo um processo recente, suscita dúvidas cujas respostas a ciência ainda se prepara para esclarecer. O Comitê Olímpico Internacional (COI) admite hoje que, para uma atleta trans almejar o ingresso em categorias femininas, ela precisa autodesignar-se e ser reconhecida, socialmente, como do sexo feminino, e ter níveis de testosterona inferiores a 10nmol/L, por pelo menos 12 meses de hormonioterapia. Falta, no entanto, consenso entre os especialistas quanto aos critérios defendidos pelo COI. No contexto do impacto da transexualidade sobre os mais diversos aspectos da atividade humana, novos estudos e diretrizes já vêm sendo requeridos para, afinal, se responder à pergunta do que se irá entender por ‘mulher’ no esporte. Talvez provoque surpresa o fato da não exigência da cirurgia de transgenitalização, em categorias femininas, por exemplo.
Controvérsias e dúvidas a espera de resoluções. Decerto, a discussão gerada a partir do pioneirismo de Tiffany parece colocar à sociedade um futuro impreciso e potencialmente tão transformado que talvez se torne difícil reconhecê-lo como possível. É este o sentido das mudanças, como também o foi a emancipação feminina do século passado: apresentar um novo; um novo subversor da ordem social, que deixa os homens órfãos de seu passado seguro e cheio de certezas. Ser homem, ser mulher; masculinidade, feminilidade; essas ideias são produtos inacabados e a transexualidade escancara a transitoriedade dos conceitos de gênero, como talvez nenhum outro fenômeno o tenha feito ao longo da história. E, afinal, sendo este o estado de coisas, como deixar de sentir uma ponta de medo; ou como deixar de se identificar, ao menos em parte, com os clamores de algumas jogadoras, ao sentirem seus lugares ameaçados, é uma questão que bem expressa o conflito.