Há uma preocupação crescente e
compreensível com a saúde mental das pessoas nesse contexto de pandemia do novo
coronavírus. Nem sequer um continente do globo foi poupado da experiência de
adoecimento imposta pelo micro-organismo e todos se questionam sobre os
possíveis impactos psíquicos provocados. Há uma gama de sentidos psicológicos que
têm influência em sensações subjetivas de bem-estar e no surgimento,
agravamento e até mesmo desaparecimento de sintomas psicopatológicos. Vamos
tentar conhecê-los e refletir sobre eles à luz de alguns conhecimentos da
Psicanálise.
Para começar, está-se falando de
uma ‘pandemia’: pan, do grego, significa tudo,
todos; e demos, significa povos.
Trata-se de uma doença, portanto, que submete ‘todos os povos’ a um risco de
adoecimento ou mesmo de morte, como facilmente se tem percebido nos números
diários, divulgados, sem descanso, pela imprensa mundial. Mas o que representa,
para a mente, estar submetida a alguém ou a alguma ‘coisa’? E estar submetida a
uma ‘coisa natural’, um elemento da natureza, produz reflexões adicionais? O
que representa estar sob a ameaça de adoecer gravemente ou mesmo poder vir a
morrer?
A expressão ‘estar submetida’
evoca, de cara, uma sensação de passividade, de perda do controle. O vírus e
sua doença corresponderia a algo ou alguém mais forte, mais poderoso, a dominar
o cenário de escolhas. Muito se tem falado, por exemplo, sobre o golpe imposto
pelo vírus à vaidade humana e suas ilusões de controle, o que é verdade. Todos
nós precisamos construir a ideia de que temos algum controle sobre nossas
vidas, sobre nossas experiências emocionais. Do contrário acabaríamos
paralisados, inertes de medo, incapazes de lidar com os estímulos que nos
invadem, de fora e de dentro. Em alguns transtornos mentais, a construção dessa
ideia pode ficar prejudicada. Algumas pessoas vivem uma vida inteira sob o
domínio de uma fantasia de ameaça descomunal. Elas demandam constantemente a
presença de ‘um outro’ para acalmá-las e fazer as escolhas que sentem não poderem
fazer sozinhas. Mas mesmo sujeitos saudáveis, sem qualquer diagnóstico
psicopatológico, podem vivenciar contextos de vida nos quais o medo, o pavor,
torna difícil assumir as escolhas. É quando se deseja que alguém aponte o
caminho, o erro. Aliás, no popular, sabe-se bem disso: quando se sofre é quando
mais fervorosamente se apela a Deus.
A carência de um controle
exterior, de uma força a determinar nossos destinos e escolhas constitui
vivência conhecida nossa. Nos primeiros anos de vida do sujeito, enquanto bebê,
se experimenta uma total situação de passividade e dependência em relação a um
outro, inclusive para a sobrevivência. As necessidades nutricionais precisam
ser supridas ‘de fora’. Retornar a um estado de coisas semelhante, quando se
espera ter as necessidades prontamente atendidas e nenhum desgaste ou esforço
precisa ser feito, sempre nos há de parecer uma solução tentadora. Assim é que
a pandemia pode funcionar como ‘esse outro’, essa ‘força maior’ a definir as
escolhas, o destino do sujeito. ‘Mas ora’ – protesta-se – ‘desejar estar
submetido a algo que nos atenda até se pode compreender, mas como se compreende
a ideia de sentir-se ‘bem’ ficando submetido a um destino tão sofrível como a
doença e a morte’?
Do ponto de vista psicanalítico,
a pandemia tem o potencial de reforçar psiquicamente as fantasias de ligação
com esse ‘outro’ poderoso dos primeiros anos e a restituir a posição infantil
de ‘passividade’, na qual toda satisfação e sofrimento ficam ‘dados’. Diante de
um tal estado de coisas, nada há que ser buscado, tudo já se tem. Tudo já está
determinado, prescrito. Desaparece a angústia do não saber, pois este ‘outro’
tudo revelou: é a doença, é a morte. Ainda que duro e sofrível, aqui trata-se
de um destino certo, definitivo, cuja possibilidade de mudança não pode ser nem
ao menos percebida. É como se,
olhando-se pelo vértice religioso, de repente, o próprio Deus tivesse descido
dos céus e anunciado finalmente o destino humano. Que se pode fazer contra
Deus? De sorte que algumas pessoas (todas, pelo menos por alguns momentos e
circunstâncias) podem experimentar alívio de estarem desresponsabilizadas de
suas dores e infortúnios. E de poderem reaver esse ‘tudo’, esse ‘Deus’ familiar
de nossa infância e perdido no processo de desenvolvimento psíquico. Em nossa
contemporaneidade, quando tanto se fala em ‘falta de sentido’, em ‘crise de
identidade’, pode-se compreender como uma experiência como a pandemia tem o
potencial de preencher, momentaneamente, esses vazios.
Pode-se traçar um paralelo entre
esse estado primitivo do desenvolvimento dos homens e a vida psíquica dos
outros animais da natureza. Os animais, como os bebês humanos, estão submetidos
aos desígnios naturais. Tudo lhes é ‘dado’ pela natureza. Se há alimentos
disponíveis saciam sua fome. Se não há, morrem, não têm escolha. Os bebês
humanos, contudo, apresentam potencial de ir bem mais além. Seu amadurecimento
psíquico reflete esse potencial. Eles se vão tornando capazes de ‘representar’
o mundo, a natureza, internamente, dentro de si. Para ter a experiência
psíquica de um objeto, o homem pode prescindir da sua percepção real e
imaginá-lo ou mesmo pensar seus atributos. Tal capacidade lhe é inerente ao
corpo, ao seu potencial biológico, e vai sendo desenvolvida pela transmissão da
capacidade de representar dos pais e da cultura. Seus instintos, suas demandas
corporais, para além de se descarregarem na natureza, encontram caminho na
constituição da mente. Na constituição de um aparelho mental que, representando
a natureza, se torna apto a entendê-la e a modificá-la.
Se ‘estar submetido’ tem um
sentido de conforto e bem-estar para o homem, também parece se pôr em desacordo
com seu potencial, a permanência e aceitação passiva de situações de extremo
desconforto. Ao ‘descer da árvore’ – para evocar uma perspectiva evolutiva e
filogenética – o ‘primeiro homem’ recusou o destino natural dos animais e deu o
primeiro passo para a construção de um caminho próprio. Ao fazê-lo, tomou para
si as rédeas da existência e assumiu, como sua, a angústia relacionada às
insatisfações pessoais. Em psicanálise, a angústia, a dor psíquica, é uma das
condições necessárias para a constituição do desejo, que mobilizará o homem na
trilha de um caminho de buscas e transformações. Um caminho que hoje a História
das civilizações nos pode contar. E recorrentemente ela nos conta dos vários
momentos nos quais as ambições humanas, de desvencilhar-se de seus aspectos
naturais, chocou-se de frente com uma verdade inexorável. Disse Freud, ‘O ego é, antes de tudo, corporal’. O
homem é, antes de tudo, de qualquer representação psíquica, de qualquer esboço
de aparelho mental, de qualquer cultura, seu corpo. E também dependem do corpo
e dos potenciais naturais que o habitam, seus desenvolvimentos psíquicos e
culturais ulteriores.
A pandemia do coronavírus
constitui um desses momentos históricos, quando o ‘corpo’ torna a ser o palco
do embate entre o ‘ser da natureza’ e
o ‘ser da cultura’. Quando Freud
constrói a psicanálise, ele analisa em predominância um outro palco, o da
mente. Na mente, ambos os seres também travam um duelo, cujo resultado
determina uma experiência psíquica mais ou menos saudável e que pode também
produzir manifestações corporais. O corpo, em si, é palco de estudo direto das
ciências biológicas. Mas num contexto de pandemia, ‘a mente se volta para o
corpo’. Tem sido comum, por exemplo, que as pessoas se ponham a observar e
vigiar os próprios corpos. A medicina tem dispendido tempo e recursos no
esforço de avaliar o corpo, em suas relações com elementos naturais. E é
intrigante (e também assustador) pensar como esse corpo que nos é tão familiar
é, ao mesmo tempo, um enorme desconhecido. Com a mente, com a Ciência, ao homem
é dado conhecer uma parte desse corpo natural, enquanto outra, bastante maior,
jaz na absoluta escuridão. E, claro, tudo isso tem impacto na mente que
observa, inclusive porque o desfecho desse embate a ameaça de completa
destruição.
Assim é que atitudes hoje mais
conhecidas como ‘negacionistas’ podem ser compreendidas. ‘É só uma gripezinha’ parece restaurar a ilusão de superioridade do
‘ser da cultura’ e driblar as
angústias inerentes a um perigo desconhecido e mortal. Essa ilusão de
superioridade costuma ocultar o seu exato oposto: uma fragilidade psíquica
significativa, que torna a mente improdutiva face ao inimigo.
De outro modo, esse ‘ser da natureza’, percebido de maneira
tão grandiosa quanto os pais fantasiados da infância, evoca sensações complexas
e diversas. A nostalgia de um ‘outro onipotente’ e dos tempos nos quais a
realidade toda era ‘dada’ e nada restava que ser buscado pode associar-se a um
alívio da angústia, já que as capacidades do homem ficam recusadas, fora de seu
campo de percepção. Ele torna, então, ao destino de pré-determinação natural e desresponsabiliza-se da qualidade de sua
existência. Em uma perspectiva social, uma pandemia global, que sinaliza risco
de adoecimento e morte a todos, parece implicar, a princípio, em redução das
diferenças habitualmente observadas entre as pessoas. O efeito psíquico no
indivíduo pode ser o de alívio das tensões relacionadas à competitividade e a sentimentos
de inveja.
Ainda no contexto da
grandiosidade do ‘ser da natureza’, a
ameaça de destruição pode ser vivida também com grande pavor paralisante, em
especial se o homem se sente incapaz de fazer qualquer coisa para lidar com o
perigo que o ameaça. São os casos nos quais, seja de momento ou de caráter
duradouro, o sentido de possuir algum controle psíquico sobre a condição se
mostra bastante enfraquecido.
Quando os dois lados do embate
podem ser reconhecidos, com seus devidos potenciais, torna-se possível fazer
uso da capacidade representativa humana e perceber a realidade de forma mais
completa. A sensação de se ter algum controle sobre a vida se fortalece. É bem
verdade que a angústia se estabelece e impacta, pois o embate não fica, como
nas situações anteriores, resolvido com a negação ou recusa de uma das partes.
A realidade representada mais totalmente é passível de análises, compreensões,
transformações. Assim é que se tenta encontrar uma vacina; se propõem e
implementam medidas de controle da disseminação do vírus; toda uma sociedade se
articula – movimentos solidários se fazem mais presentes. A crise instaurada
pelo vírus, como outras crises da História, se converte em oportunidade de
desenvolvimento de novas tecnologias científicas e sociais para um melhor
viver.
Em nível individual, muitas
mudanças são requeridas – o sujeito precisa se isolar; sua rotina de trabalho
modifica; já não conta com as atividades de lazer costumeiras; não encontra
mais familiares ou pessoas queridas; processos sociais que envolvam aglomeração
de pessoas ficam impedidos, como até mesmo os velórios e sepultamentos. E como
em toda mudança importante, mecanismos psíquicos de luto são acionados. Sobrevém
a necessidade de abandonar os hábitos antigos para possibilitar a construção de
novas maneiras de existir. A tecnologia de nosso tempo, e seus melhoramentos
decorrentes do contexto pandêmico, vem funcionando como expressão dessas novas
maneiras. Mas sim, também não há luto sem dor e sentimentos de tristeza, raiva,
medo, desesperança são naturais e esperados. Para algumas pessoas pode parecer
mesmo impossível desligar-se de seu mundo anterior e elas acabam mais sujeitas
a adoecimentos do espectro clínico das depressões.
Uma situação curiosa, que vem
sendo observada com frequência nos tempos de quarentena, é o fenômeno dos
‘superprodutivos’. Os indivíduos assim denominados aparentam ‘não parar’, se
envolvem em inúmeras atividades, preenchem os dias com sequências de
compromissos, mesmo isolados em casa. Eles podem dar a falsa impressão de
estarem adaptados, quando, de fato, podem estar sofrendo de uma ‘compulsão’ por
manterem as mentes ocupadas. O vazio, a solidão, o medo que a pandemia
inevitavelmente evoca têm sua realidade obliterada pelas ocupações sucessivas. Percebe-se
aí um sentido psicológico de autodefesa para um comportamento de tal espécie.
Voltando ao ‘palco’ da pandemia,
ao corpo, nele é onde se esperam encontrar as expressões mais marcantes de
angústia e padecimento. Isso também porque as experiências psíquicas potenciais
associadas ao contexto pandêmico podem ser ‘demais’ para a mente do sujeito e
provocarem-lhe algo como um ‘curto-circuito’ momentâneo. Algumas pessoas já
apresentam uma tendência, constituída durante seus processos de desenvolvimento
mental, de serem menos capazes de utilizar a mente como instrumento para
representação e elaboração dos fenômenos corporais. Nestes curtos-circuitos, é
como se a mente ‘desligasse’, embora, na superfície, ela aparente estar
funcionando normalmente. Acontece somente que algumas experiências acabam sem
representação, sem expressão através dela e, sem esse caminho psíquico, acabam
por se descarregar, de forma direta, no corpo. Tem sido frequente observar
pessoas queixarem-se de ‘ansiedade, angústia’, principalmente com sintomas
físicos. Quando se lhes questionam os contextos psíquicos relacionados, elas
pouco ou nada têm a dizer. Muitas vezes nem a pandemia é referida de um jeito
mais significativo. E algumas chegam mesmo a adoecerem das maneiras as mais
diversas. Algumas vertentes da psicanálise, que enfatizam a importância do
cuidado em saúde mental para manutenção e recuperação da própria saúde física,
baseiam-se em observações como essas.
Relevante frisar que a variedade
de reações e manifestações psíquicas descritas podem compor o leque de
manifestações da dita vida psíquica normal. Pessoas mentalmente saudáveis podem
experimentar momentos de negação dos riscos, alternados com instantes de medo
intenso e paralisante; podem se sentirem consoladas de insatisfações crônicas,
quando a pandemia lhes rouba o protagonismo; ou ainda, não sem expressar
dificuldades, podem buscar e encontrar adaptações e mudanças para conviverem
com o novo contexto. Um dos verdadeiros sentidos da patologia mental consiste
na cristalização, no engessamento das manifestações psíquicas em uma só forma.
A flexibilidade e a plasticidade pessoal, nesses casos, ficam perdidas.
Daí a atenção, tão necessária na
rotina e mais ainda em tempos de graves ameaças ao sujeito humano, para a mente
e os aspectos de seu funcionamento. Ela constitui a mais definitiva marca do ‘ser da cultura’, justamente naquilo que
diferencia o homem do restante dos outros animais. Para realizar o potencial
humano de desvencilhar-se dos destinos impostos pela natureza – agora com o
coronavírus - a cada momento, faz-se essencial o investimento nesse ‘ser da cultura’, na mente e sua
capacidade representativa. Quem sabe assim se conseguem manter perenes os
caminhos que convertem toda crise em oportunidades de crescimento e construção
de novas formas de existir.