segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

O Mundo é um Moinho



(Cartola)

Ainda é cedo, amor
Mal começaste a conhecer a vida
Já anuncias a hora de partida
Sem saber mesmo o rumo que irás tomar

Preste atenção, querida
Embora eu saiba que estás resolvida
Em cada esquina cai um pouco a tua vida
Em pouco tempo não serás mais o que és

Ouça-me bem, amor
Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos, tão mesquinho.
Vai reduzir as ilusões a pó

Preste atenção, querida
De cada amor tu herdarás só o cinismo
Quando notares estás à beira do abismo
Abismo que cavaste com os teus pés


Essa belíssima canção de Cartola vai como um recado. Um recado de alguém que terrivelmente agora sente a famosa dor do abandono; a dor de ser deixado por um alguém a quem se deposita grande consideração.

Ainda que não se saiba que nesta música o grande Cartola falava senão à sua filha, não fica difícil inferir, pela letra, que é desejo do autor encarnar uma “sapiência” superior da qual o destinatário da canção não compartilha. Quem já experimentou na pele a dor de ser abandonado conhece exatamente a sensação e a razão de cada uma das palavras que o poeta emprega. “Ser deixado de lado”, “preterido”, “abandonado” constitui seguramente o maior dos golpes à vaidade humana. O maior. E, é decerto impossível sobreviver ileso a ele.

A maturidade do autor conseguiu, no entanto, fazer despender todo seu grito de dor de forma poética e com palavras, diga-se de passagem, amenas. O golpe no ego é tão forte que a reação inicial consiste em buscar dentro de si a qualificação exata que o coloque e o mantenha numa posição acima de seu algoz. Cartola se apropria de sua “sabedoria de vida” para relembrar ao outro de sua inexperiência; refere-se ao outro como um alguém que nem bem começou a viver e já anuncia a hora de ir embora e lhe deixar. Mais ainda: o poeta se veste de sua característica de “mais vivido” para prenunciar um futuro de desilusão ao outro: um futuro quando sonhos e amores levarão ao abismo inevitável, cavado pela própria impaciência e insapiência juvenis de quem recebe seu recado. Cartola, em verdade, reaciona ao abandono como fazem muitas pessoas no mundo inteiro. Quem nunca ouviu (ou disse) expressões corriqueiras como “eu sou mais eu”, “vai sofrer, pois nunca arranjará ninguém como eu” ou ainda, “ninguém nunca cuidará de você como eu cuido”.

Essas expressões servem como método de reafirmação do ego diante das perdas e frustrações pessoais. Elas condensam o principal de duas funções da linguagem nesses momentos: a primeira, o mecanismo de extravasamento de toda mágoa e toda raiva associados à representação de quem vai embora e, a segunda, o processo de comunicar, implicitamente nesse caso, a tentativa última de convencer a pessoa que quer ir, a ficar.

Prestando-se bem atenção à letra, percebe-se que Cartola exercita as funções de linguagem mencionadas com sua canção. Ele enaltece a importância dos seus vários anos de vida, como conhecedor da vida, e prediz o destino de quem o abandona, quase como uma maldição velada, disfarçada em música, em poesia, como só os grandes mestres sabem fazer. E, por que não pensar que seria essa sua boa chance de imputar medo nas expectativas do outro e assim poder trazê-lo de volta para sanar de vez a causa de sua dor.

Com toda certeza, a sabedoria e a experiência de vida de Cartola não o impediram de sentir o que é universal – a dor do adeus de quem quer ir para longe. Mas, sem dúvida, a sabedoria e a experiência ajudaram-no a não paralisar ante os desencontros... a não chorar uma vida inteira o desgosto... a não se rebelar em contraponto aos agravos da vida, como fazem tantos jovens inexperientes e pessoas de personalidade imatura... ajudaram-no a transformar sua dor em Arte.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Todo o Sentimento



(Chico Buarque e Cristóvão Bastos)

Preciso não dormir
Até se consumar
O tempo da gente.
Preciso conduzir
Um tempo de te amar,
Te amando devagar e urgentemente.

Pretendo descobrir
No último momento
Um tempo que refaz o que desfez,
Que recolhe todo sentimento
E bota no corpo uma outra vez.

Prometo te querer
Até o amor cair
Doente, doente...
Prefiro, então, partir
A tempo de poder
A gente se desvencilhar da gente.

Depois de te perder,
Te encontro, com certeza,
Talvez num tempo da delicadeza,
Onde não diremos nada;
Nada aconteceu.
Apenas seguirei
Como encantado ao lado teu.


“Todo o Sentimento” é uma canção profunda e de uma melancolia conformada que impressionam. Certamente o tema central da obra concentra-se na força devastadora de um tal “Tempo” sobre todo encantado amor de dois personagens em cena. Um deles é o autor, atormentado por uma previsão de fim do sentimento dele pela outra pessoa da música. É ele quem no decorrer das estrofes, irá prevenir-se da dor da continuidade de uma relação sem amor para no futuro reencontrar um outro “Tempo” em que seu sentimento seja novamente possível. Sobre essa temática soam as notas de “Todo o Sentimento”.

Desde os primeiros versos percebe-se a necessidade preemente de o autor viver o mais intensamente possível todo seu sentimento nos instantes que “lhe restam” com a pessoa amada. Sim, que “lhe restam”, pois o decorrer do texto mostra sua crença nítida na força de ‘algo’ capaz de desfazer esse sentimento. Ele espera não dormir até que termine o tempo... ele puxa para si a responsabilidade de amar com ardor, aproveitando cada momento sem pressa, como diz em “te amando devagar e urgentemente”... espera aproveitar ao máximo esses instantes e pretende poder dar à pessoa amada toda a cota de felicidade que puder dar para si, decerto porque ama essa pessoa e decerto também porque antevê o fim - por isso talvez queira recompensá-la desde já por um sofrimento futuro inevitável que, por ora, a outra pessoa não advinha.

Sequencialmente ele fala de um “Tempo”... um “Tempo” que desfez. O autor do texto crê de forma inexorável que o amor, o sentimento, não dura para sempre. Ele sucumbe à força de um “Tempo” – aqui representando possivelmente toda uma série de obstáculos que a rotina e a vida a dois impõem à sobrevivência de uma relação. Talvez outras experiências amorosas anteriores do autor tenham-no levado a identificar-se com essa ideia interior. Mas ele não deixa margem para dúvidas: é inevitável o fim do sentimento e numa intenção solitária, na qual talvez nem ele mesmo acredite tanto, ele diz querer um “Tempo” que refaz... um “Tempo” que coloca no corpo o sentimento outra vez.

Na segunda parte da obra ele reafirma o ‘querer’ até o fim, quando o amor cairá, doente. É aí, ao que parece, que ele toma a resolução de partir mais cedo: ir embora a tempo de soltarem-se os laços que os fazem presos um ao outro. Sim, pois a essa altura, para o autor, foi-se embora o sentimento... o amor caiu doente e ficaram possíveis formas de vínculo que não o “sentir afeto”. Talvez aqui venham à memória algumas estórias de casais que ficam juntos anos e anos por questões de costume, às vezes um senso de responsabilidade demasiado para com a pessoa ou família, outras vezes por convenção social, sentimentos de piedade para com a outra pessoa, filhos e tantos outros motivos perpetuadores de um relacionamento sem amor. De fato, esses tipos de relação existem. Entretanto entra aqui uma indagação importante: não estaria o autor antecipando um fim por um certo medo de que não seja ele mas ela, a outra pessoa, quem ponha o ponto final no relacionamento? Não seria o amor da outra pessoa q ele teme acabar no futuro? Teriam sido decepções amorosas anteriores quem o teriam levado a pensar que todo amor termina? Não sabemos nós identificar na vida cotidiana bonitas estórias de pessoas que se amam até os dias finais de suas vidas?

Prefere o autor, pois, desistir e perder a pessoa amada, para quem sabe lá, depois, em um tempo sem mágoas ou rancores, um “tempo de delicadeza”, ele poder vivenciar uma forma de amor totalmente passional mas sem riscos. Uma forma de amor na qual ele somente espreita, apenas segue fascinado, encantado pela outra pessoa, sem estar verdadeiramente junto... sem temer a possibilidade de sofrer uma desilusão forte (ele já é, antes mesmo, desiludido)... talvez algumas pessoas vejam aqui como se o autor desejasse um novo recomeço... como se naqueles versos do princípio “Pretendo descobrir/ No último momento/ Um tempo que refaz o que desfez/ Que recolhe todo sentimento/ E bota no corpo uma outra vez” estivesse a esperança agora declamada no fim da música... como se ele tentasse de novo amar e ser amado do lado da mesma pessoa a quem abandonou em tempo remoto. Pode ser por aí... é fato. Mas creio que, se foi essa a intenção de quem escreveu a música, não ficou totalmente claro nesse sentido. Parece que o personagem se conformaria em viver só admirando, em seguir assim... sem a intensidade, sem a relação de antes... só perto... só encantado.

Vale ressaltar que as características do autor da música não se referem diretamente aos compositores, claro. Associa-se ao personagem por eles encarnado para compor a temática da canção. Óbvio que todo processo interpretativo é sujeito à viéses de caráter pessoal de quem interpreta e, devem ser compreendidos assim aqui, embora a tentativa inicial seja a de buscar a lógica correta do entendimento da obra pelo texto. De resto, essas são as minhas impressões dessa música fantástica, que tem assinatura clara de Chico... só podia ser dele... desconheço outro compositor que fale de sentimentos tão profundos de um jeito mais poético.