O grande triunfo do filme A
garota ideal consiste em apresentar ao público um dado vértice de
compreensão do psíquico, ainda que ele se manifeste de uma forma estranha,
inusual. Uma querida professora, após assistir ao filme, fez alusão ao
comportamento comum das crianças quanto ao brincar. Decerto, não haveria
espanto se, ao invés de Lars, um homem adulto, estivesse uma criança a
fantasiar fortemente com sua boneca, nas conhecidas brincadeiras onde o ‘faz de
conta’ toma ares de real. O sentido das brincadeiras infantis e o sentido de
seu aparecimento como sintoma em Lars, como mostra o filme, sugere que tais
eventos merecem ser tratados com a devida seriedade pela cultura. Sobretudo,
pela carga emocional e pelos processos psíquicos que eles veiculam. Sem falar
da já marcante tendência, na cultura contemporânea, dos relacionamentos
virtuais e, mais recentemente, os relacionamentos com chatbots e robôs
humanoides.
O início do filme mostra Lars
escondendo-se do contato humano, fugindo às investidas de familiares, de
pessoas do trabalho, da igreja. Em particular de sua cunhada que ‘quer abraçar
o mundo’. O abraço, o ‘toque humano’ lhe dói concretamente no corpo. Ele busca
passar desapercebido até que, no contexto da gravidez da cunhada, ele
‘encomenda uma noiva’ – para o restante de sua comunidade, uma boneca inflável
erótica – ‘com a qual passa a se apresentar’ a todos. ‘Com a qual passa a se
apresentar’, porque Bianca se mostra bem mais do que somente uma companhia.
Bianca é tímida, precisa de ajuda e de cuidados para estar em sociedade,
precisa de tratamento, compartilha do mesmo destino trágico de Lars, o qual
perdera os pais na ocasião de seu nascimento. Bianca parece ser a maneira
encontrada por Lars de comunicar aos outros sua condição psíquica e emocional.
E assim receber dos outros o suporte emocional de que necessita. Nas palavras
dele mesmo: ‘Bianca veio assim para ajudar as pessoas’.
Mas Bianca também é um outro, com
características peculiares providas de sentido. É um outro do sexo feminino e
responde às demandas sensuais de Lars e a pressão vivida por uma namorada. Em
oposição a Margoo e às demais mulheres da comunidade, Bianca não precisa ser
conquistada. Lars não precisa se preocupar com a rivalidade dos demais homens e
nem precisa vivenciar demasiadamente a pressão de cuidar de sua relação e
mantê-la (pelo menos, não de pornto). Afinal, em síntese e como aspecto mais
essencial, tal qual as flores artificiais, Bianca ‘pode durar para sempre’. Ao
escolher Bianca, Lars comunica sua ‘saída’ para evitar os conflitos edipianos e
a dor da perda.
Não à toa, o adoecimento eclode
no contexto da gestação da cunhada. A óbvia associação com a história de Lars –
a perda da mãe (e do pai, emocionalmente impedido de se conectar ao filho desde
então), quando do parto dele – sugere a dimensão da mobilização emocional
interna vivida por Lars. É provável que, impelido por suas pulsões sexuais, mas
também pela necessidade de buscar um outro com quem pudesse sanar as profundas
feridas mentais, reabertas nesse contexto, Lars tenha ‘criado’ Bianca. Um
outro, por essência, seguro, garantido, incapaz de abandoná-lo e com o qual ele
poderia se apresentar aos demais.
E então ele encontra uma
terapeuta sensível, capaz de perceber o sintoma – Bianca - como uma forma de
apresentação, de fato, a ser comunicada. Não apenas um sintoma bizarro,
estranho, que deveria ser eliminado. Mas como uma produção psicológica e, como
tal, provida de sentido e significado. Que estaria ali, presente, enquanto Lars
precisasse dessa produção. A terapeuta ‘aceita e acolhe’ Bianca, por saber que
através dela Lars comunica sua própria doença, seu trauma e sua necessidade de
ser ouvido e compreendido. Ela entende o sintoma tal como os adultos deveriam
entender as brincadeiras infantis: como uma realidade psíquica digna da mais
séria consideração. Essa é a condição fundamental pela qual a relação
terapêutica se vai desenvolver. A ‘esquisitice’ de Lars passa a ter um lugar
onde ela pode ser vivida, comunicada e pensada. Naturalmente, esse processo vai
favorecendo que, aos poucos, os conteúdos psíquicos de Lars se passem a
apresentar de outras formas, para além de Bianca, a qual vai ficando cada vez
mais ‘de fora’ da consulta. Ele vai desvelando seus incômodos com o abraço, com
o toque, seu medo frente à gestação da cunhada. Ele vai se deixando tocar e
paulatinamente construindo uma outra relação com o toque, uma relação inclusive
de alívio e satisfação.
Nada disso pode ser experimentado
sem uma significativa dose de medo e tentativa de restaurar um estado anterior
das coisas. Lars vai percebendo que não precisa mais tanto de Bianca e se vai
instaurando a temida realidade da separação e da perda. Ele anuncia: ‘a pedi em
casamento, mas ela não aceitou’. Nesse mesmo dia, se recusa a entrar no
consultório, ‘pois Bianca está péssima e não pode deixá-la’. Lars vai
experimentando, também no seu dia-dia, essa separação, ao permitir, não sem dor
e sem protestos, a inserção de outras pessoas da comunidade, em seu
relacionamento. Aliás, a comunidade e a família aparecem como uma extensão, na
vida, do próprio tratamento, apresentando a Lars as experiências emocionais das
quais ele tenta evadir, ajudando-o a conter e a cuidar dessas experiências. E o
filme mostra bem que o acolhimento da comunidade passa pelo reconhecimento das
pessoas quanto a sua própria esquisitice, uma condição necessária para receber
e compreender a esquisitice do outro.
Mas voltando a Lars, a separação
psíquica de Bianca vai acontecendo, pari passu e em associação, com o
desenvolvimento do seu repertório emocional e mental. Ele vai precisando cada
vez menos de Bianca e começa a vislumbrar (sim, se nota ele olhando diferente
para a Margoo) outras realidades possíveis. As sequências de cena no boliche
mostram Lars interagindo com Margoo, num momento quando se presentificam as
diversas ameaças das quais Lars se evadia com e através de Bianca. Margoo, o
objeto de interesse, aparece bem mais habilidosa no jogo e rodeada de outros
homens. Mas, após alguns instantes de medo e hesitação, Lars consegue se
divertir, e sem Bianca. No dia seguinte, ela ‘não acorda’ e tem seu processo de
morte anunciado. Lars deprime. Recusa-se ‘a perder’ seu objeto de amor.
Tranca-se no quarto com ele. Porém nada resiste, quando a pulsão de vida pode
encontrar um caminho para amadurecer e se complexificar. Bianca não é mais
necessária. Lars finalmente pode ‘perder’, como expressão derradeira de sua
nova possibilidade de vivenciar o luto. No final, tem-se a ‘caminhada’ de Lars
em direção a uma outra realidade possível, mais rica de experiências
emocionais.
O filme se faz importante, quando
se tem em mente o crescente número de relacionamentos afetivos com chatbots ou
robôs humanoides, na sociedade atual. As dificuldades inerentes às relações
entre duas pessoas – as experiências de perda e medo da perda, por exemplo –
têm levado cada vez mais ao isolamento e a relações de objeto mais
superficiais, com riscos reduzidos. Vínculos com sistemas virtuais, com a
pretensa ambição de oferecer às pessoas interações garantidas, ideais, com
‘respostas ideais’ às inquietações humanas, parecem despontar como um dos
caminhos promissores de investimento objetal. É provável, pois, que seja através
destas vinculações que se tente estabelecer a ‘séria brincadeira’ de vivenciar
experiências emocionais e de amadurecer com elas. Algumas questões então se
impõem: como pensar e construir essas tecnologias diante dessa ‘nova’
perspectiva? Serão os sistemas capazes de dar suporte e respostas
individualizadas que promovam contato emocional e amadurecimento pessoal?
Construiremos o ‘robô-analista ideal’?