segunda-feira, 10 de agosto de 2020

‘A monster calls’ ou os sentidos do chamado psíquico




Um dos mais importantes psicanalistas da atualidade, Wilfred Bion, propôs um questionamento acerca do valor atribuído aos sonhos sonhados enquanto dormimos. Para ele, deveria haver algum sentido psíquico para a atitude geral de desqualificar as realidades vivenciadas nos sonhos.   

Freud, ao fundar a psicanálise em 1900, postulou que os sonhos constituiriam um meio pelo qual o psiquismo realizaria os desejos não realizados durante a vida de vigília. Um sentido proposto por ele para a tendência de esquecermos facilmente dos sonhos – e talvez também para a atitude de subestimar seu valor – consistiria nas consequências psíquicas de ficarmos conscientes de nossos desejos e frustrações.

Alguns sonhos, no entanto, parecem lutar contra essa tendência de serem esquecidos e se impõem, com insistência, no nosso dia-dia. Na onda de tantos outros filmes e obras artísticas, ‘A monster calls’ destaca-se por colocar as vivências oníricas no centro da narrativa, trazendo à tona correlações de sentido entre elas e a vida de vigília.

O personagem principal, Conor O’Malley, um pré-adolescente inglês, tem um recorrente pesadelo: seu mundo está desmoronando, enquanto segura, desesperado pela mão, a sua mãe, prestes a precipitar-se num abismo. Conor acorda sempre neste ponto e, como não pudesse sonhar o restante do sonho, não mais consegue voltar a dormir.

Também se nos apresenta a vida acordada de Conor. Nas primeiras cenas, ele aparece como um jovem prestimoso, a fazer o próprio café e cuidar da casa. Sua mãe sofre de câncer, embora ele expresse intensa confiança em seu tratamento e recuperação. Na escola, é vítima do assédio e violência de alguns colegas de classe e parece responder passivamente a essas investidas. Há ainda a figura da avó cujas intervenções junto à condição da mãe lhe provocam sentimentos de raiva e irritação.

A narrativa vai evoluindo a partir da influência sobre Conor de uma outra experiência onírica. Um monstro assustador, sob a forma de uma árvore, surge-lhe - em devaneio, uma espécie de sonho acordado - com a intenção de contar a ele três estórias e a exigência de que, ao final, Conor lhe revelasse a quarta, a estória de seu pesadelo. De início, o jovem zomba do monstro, fruto de seus sonhos e imaginação. Mas ouve, de réplica, a seguinte pergunta: ‘como saber se a própria vida vivida não é também um sonho’?

A sinopse e a pergunta podem até dar a impressão de que ‘A monster calls’ trata-se de um filme bobo para crianças. As profundas experiências emocionais vividas por Conor refletem o oposto. O expectador fica tomado por elas através das diversas dimensões dos sonhos do personagem: seu pesadelo durante o sono, seus devaneios e sua vida acordada.

Vai ficando evidente, por exemplo, que o otimismo do jovem com o tratamento da mãe não se mostra tão inquestionável como parecia. Embora não pareça admiti-lo mais diretamente, algumas expressões de Conor dão sinal de sua desconfiança. Ele pergunta mais de uma vez à mãe, por exemplo, se ela não lhe gostaria de contar alguma coisa.

A figura da avó, no entanto, parece concentrar mais os sentimentos de desconfiança e hostilidade do menino. Psicologicamente, talvez ela representasse melhor os riscos relacionados ao adoecimento materno, com suas constantes e rígidas intervenções. A perspectiva de perder a mãe e ir morar com a avó era difícil de ser encarada e Conor a repelia com irritação. Seu pai, por outro lado, parecia-lhe amoroso e compreensivo, mas o jovem se ressentia de não encontrar espaço no ‘outro país’ onde o pai morava com uma nova família.

O amadurecimento do personagem e sua ‘revelação final’ vai sendo construída na relação com o ‘monstro’ de seu devaneio. A recusa e o medo iniciais vão dando lugar à demanda – Conor passa a desejar as conversas com o ser fantástico. As estórias contadas por ele aparecem permeadas de paixões, perdas e personagens complexos, que não são o que aparentam ser, afinal. ‘As estórias são criaturas selvagens’, adverte o monstro, e aquelas, contadas entre os dois, já estavam produzindo efeitos sobre o garoto.

Passamos a acompanhar as transformações do personagem. Sua agressividade, antes mais contida, agora expressa-se com intensidade. Ele destrói a sala cheia de relíquias da avó. E esmurra seu colega abusador, mandando-o para o hospital. O jovem prestimoso e passivo vai podendo vivenciar outras experiências, outras maneiras de ser ele mesmo. Vai se dando conta também de seu desejo de punição e da complexidade dos sentimentos e das estórias que o habitam. É quando a parte do sonho não sonhado, aquela mesma interrompida de seu pesadelo, vai podendo ser vivida.

A atitude compreensiva do monstro e dos outros personagens de seu sonho desperto contribuem para que Conor vivencie suas novas experiências de uma forma menos ameaçadora. O enunciado final de seu pesadelo, até então não sonhado o coloca definitivamente diante do ‘monstro’ que tentava evitar: ele mesmo e o desejo de livrar-se da incômoda mãe adoecida. Dar-se conta de uma representação tão desagradável de si não acontece senão com muita dor. O monstro, porém, já não assusta mais tanto e, consolado por ele, Conor pode enfim perceber-se como o ser completo e contraditório do humano.

E pode ficar livre para sonhar outros sonhos. O pesadelo, afinal, era apenas uma parte de si tentando exprimir-se contra uma resistência do tamanho da dor que prenunciava. Conor podia estar agora mais diante da realidade da perda de sua mãe. Estava mais seguro de seu amor por ela, pois agora conseguia experimentar e compreender mais os sentimentos hostis que sentia também por ela. E dela pôde se despedir.

De uma outra perspectiva, a parte não sonhada do pesadelo comunicava a Conor a impossibilidade de ele ‘salvar’ a mãe. Ela punha termo à onipotência infantil e à ilusão de conservar o laço edipiano materno, tão universal às crianças e conhecido da psicanálise. Depois do adeus, seguimos Conor em sua nova vida, seu novo quarto (o mesmo da mãe quando criança?), com as lembranças maternas como prova de que ela estaria presente na vida dele, não materialmente e sim como imagem a acompanhá-lo por suas próximas estórias.

Uma questão fica: o que seria esse ‘monstro que chama’, que parece reivindicar atenção?

Freud entendia as imagens oníricas como um produto condensado de várias outras imagens e experiências emocionais distintas. Talvez o monstro representasse o pesadelo e sua recorrência, seu clamor por expressão. Talvez representasse a onipotência do menino, desejoso de ‘ser poderoso’ para curar a mãe. Quem sabe fosse a própria agressividade contida ou o anseio por uma figura paterna forte e protetora a guiá-lo num período de aflição. Ou, como referido, esse monstro fosse ele mesmo, sua parte que queria ‘matar a mãe e seu sofrimento’; sua parte que representava o fracasso da onipotência e a renúncia dos desejos edípicos.

Como as imagens oníricas, também as pessoas e coisas da vida desperta funcionam na mente como representantes de nossas experiências emocionais. Nesse sentido, a vigília não parece tão diferente dos sonhos. ‘A monster calls’ é, na realidade, um grande chamado para que se preste atenção à vida psíquica. Em toda sua grandeza e monstruosidade.   

A psicanálise faz o mesmo chamado. Todo bom analista é como um monstro a apresentar ao sujeito suas partes dolorosas, que não podem ser sonhadas e, por isso, ‘cobram’ apreciação. Nas cenas finais do filme, Conor descobre seu monstro nos cadernos e nas estórias da mãe-criança. E fica no ar outras perguntas: será que ela, de alguma maneira, transferiu para o filho sua capacidade de sonhar? Seria o monstro também uma representação dessa capacidade?

Essa é toda a esperança de uma análise. Transferir para um outro a capacidade de sonhar os sonhos não sonhados. Como no desenho último, sujeito e monstro abraçados.   



sexta-feira, 24 de julho de 2020

Pandemia, saúde mental e psicanálise

Há uma preocupação crescente e compreensível com a saúde mental das pessoas nesse contexto de pandemia do novo coronavírus. Nem sequer um continente do globo foi poupado da experiência de adoecimento imposta pelo micro-organismo e todos se questionam sobre os possíveis impactos psíquicos provocados. Há uma gama de sentidos psicológicos que têm influência em sensações subjetivas de bem-estar e no surgimento, agravamento e até mesmo desaparecimento de sintomas psicopatológicos. Vamos tentar conhecê-los e refletir sobre eles à luz de alguns conhecimentos da Psicanálise.

Para começar, está-se falando de uma ‘pandemia’: pan, do grego, significa tudo, todos; e demos, significa povos. Trata-se de uma doença, portanto, que submete ‘todos os povos’ a um risco de adoecimento ou mesmo de morte, como facilmente se tem percebido nos números diários, divulgados, sem descanso, pela imprensa mundial. Mas o que representa, para a mente, estar submetida a alguém ou a alguma ‘coisa’? E estar submetida a uma ‘coisa natural’, um elemento da natureza, produz reflexões adicionais? O que representa estar sob a ameaça de adoecer gravemente ou mesmo poder vir a morrer?


A expressão ‘estar submetida’ evoca, de cara, uma sensação de passividade, de perda do controle. O vírus e sua doença corresponderia a algo ou alguém mais forte, mais poderoso, a dominar o cenário de escolhas. Muito se tem falado, por exemplo, sobre o golpe imposto pelo vírus à vaidade humana e suas ilusões de controle, o que é verdade. Todos nós precisamos construir a ideia de que temos algum controle sobre nossas vidas, sobre nossas experiências emocionais. Do contrário acabaríamos paralisados, inertes de medo, incapazes de lidar com os estímulos que nos invadem, de fora e de dentro. Em alguns transtornos mentais, a construção dessa ideia pode ficar prejudicada. Algumas pessoas vivem uma vida inteira sob o domínio de uma fantasia de ameaça descomunal. Elas demandam constantemente a presença de ‘um outro’ para acalmá-las e fazer as escolhas que sentem não poderem fazer sozinhas. Mas mesmo sujeitos saudáveis, sem qualquer diagnóstico psicopatológico, podem vivenciar contextos de vida nos quais o medo, o pavor, torna difícil assumir as escolhas. É quando se deseja que alguém aponte o caminho, o erro. Aliás, no popular, sabe-se bem disso: quando se sofre é quando mais fervorosamente se apela a Deus.

A carência de um controle exterior, de uma força a determinar nossos destinos e escolhas constitui vivência conhecida nossa. Nos primeiros anos de vida do sujeito, enquanto bebê, se experimenta uma total situação de passividade e dependência em relação a um outro, inclusive para a sobrevivência. As necessidades nutricionais precisam ser supridas ‘de fora’. Retornar a um estado de coisas semelhante, quando se espera ter as necessidades prontamente atendidas e nenhum desgaste ou esforço precisa ser feito, sempre nos há de parecer uma solução tentadora. Assim é que a pandemia pode funcionar como ‘esse outro’, essa ‘força maior’ a definir as escolhas, o destino do sujeito. ‘Mas ora’ – protesta-se – ‘desejar estar submetido a algo que nos atenda até se pode compreender, mas como se compreende a ideia de sentir-se ‘bem’ ficando submetido a um destino tão sofrível como a doença e a morte’?

Do ponto de vista psicanalítico, a pandemia tem o potencial de reforçar psiquicamente as fantasias de ligação com esse ‘outro’ poderoso dos primeiros anos e a restituir a posição infantil de ‘passividade’, na qual toda satisfação e sofrimento ficam ‘dados’. Diante de um tal estado de coisas, nada há que ser buscado, tudo já se tem. Tudo já está determinado, prescrito. Desaparece a angústia do não saber, pois este ‘outro’ tudo revelou: é a doença, é a morte. Ainda que duro e sofrível, aqui trata-se de um destino certo, definitivo, cuja possibilidade de mudança não pode ser nem ao menos percebida.  É como se, olhando-se pelo vértice religioso, de repente, o próprio Deus tivesse descido dos céus e anunciado finalmente o destino humano. Que se pode fazer contra Deus? De sorte que algumas pessoas (todas, pelo menos por alguns momentos e circunstâncias) podem experimentar alívio de estarem desresponsabilizadas de suas dores e infortúnios. E de poderem reaver esse ‘tudo’, esse ‘Deus’ familiar de nossa infância e perdido no processo de desenvolvimento psíquico. Em nossa contemporaneidade, quando tanto se fala em ‘falta de sentido’, em ‘crise de identidade’, pode-se compreender como uma experiência como a pandemia tem o potencial de preencher, momentaneamente, esses vazios.

Pode-se traçar um paralelo entre esse estado primitivo do desenvolvimento dos homens e a vida psíquica dos outros animais da natureza. Os animais, como os bebês humanos, estão submetidos aos desígnios naturais. Tudo lhes é ‘dado’ pela natureza. Se há alimentos disponíveis saciam sua fome. Se não há, morrem, não têm escolha. Os bebês humanos, contudo, apresentam potencial de ir bem mais além. Seu amadurecimento psíquico reflete esse potencial. Eles se vão tornando capazes de ‘representar’ o mundo, a natureza, internamente, dentro de si. Para ter a experiência psíquica de um objeto, o homem pode prescindir da sua percepção real e imaginá-lo ou mesmo pensar seus atributos. Tal capacidade lhe é inerente ao corpo, ao seu potencial biológico, e vai sendo desenvolvida pela transmissão da capacidade de representar dos pais e da cultura. Seus instintos, suas demandas corporais, para além de se descarregarem na natureza, encontram caminho na constituição da mente. Na constituição de um aparelho mental que, representando a natureza, se torna apto a entendê-la e a modificá-la.

Se ‘estar submetido’ tem um sentido de conforto e bem-estar para o homem, também parece se pôr em desacordo com seu potencial, a permanência e aceitação passiva de situações de extremo desconforto. Ao ‘descer da árvore’ – para evocar uma perspectiva evolutiva e filogenética – o ‘primeiro homem’ recusou o destino natural dos animais e deu o primeiro passo para a construção de um caminho próprio. Ao fazê-lo, tomou para si as rédeas da existência e assumiu, como sua, a angústia relacionada às insatisfações pessoais. Em psicanálise, a angústia, a dor psíquica, é uma das condições necessárias para a constituição do desejo, que mobilizará o homem na trilha de um caminho de buscas e transformações. Um caminho que hoje a História das civilizações nos pode contar. E recorrentemente ela nos conta dos vários momentos nos quais as ambições humanas, de desvencilhar-se de seus aspectos naturais, chocou-se de frente com uma verdade inexorável. Disse Freud, ‘O ego é, antes de tudo, corporal’. O homem é, antes de tudo, de qualquer representação psíquica, de qualquer esboço de aparelho mental, de qualquer cultura, seu corpo. E também dependem do corpo e dos potenciais naturais que o habitam, seus desenvolvimentos psíquicos e culturais ulteriores.

A pandemia do coronavírus constitui um desses momentos históricos, quando o ‘corpo’ torna a ser o palco do embate entre o ‘ser da natureza’ e o ‘ser da cultura’. Quando Freud constrói a psicanálise, ele analisa em predominância um outro palco, o da mente. Na mente, ambos os seres também travam um duelo, cujo resultado determina uma experiência psíquica mais ou menos saudável e que pode também produzir manifestações corporais. O corpo, em si, é palco de estudo direto das ciências biológicas. Mas num contexto de pandemia, ‘a mente se volta para o corpo’. Tem sido comum, por exemplo, que as pessoas se ponham a observar e vigiar os próprios corpos. A medicina tem dispendido tempo e recursos no esforço de avaliar o corpo, em suas relações com elementos naturais. E é intrigante (e também assustador) pensar como esse corpo que nos é tão familiar é, ao mesmo tempo, um enorme desconhecido. Com a mente, com a Ciência, ao homem é dado conhecer uma parte desse corpo natural, enquanto outra, bastante maior, jaz na absoluta escuridão. E, claro, tudo isso tem impacto na mente que observa, inclusive porque o desfecho desse embate a ameaça de completa destruição.

Assim é que atitudes hoje mais conhecidas como ‘negacionistas’ podem ser compreendidas. ‘É só uma gripezinha’ parece restaurar a ilusão de superioridade do ‘ser da cultura’ e driblar as angústias inerentes a um perigo desconhecido e mortal. Essa ilusão de superioridade costuma ocultar o seu exato oposto: uma fragilidade psíquica significativa, que torna a mente improdutiva face ao inimigo.

De outro modo, esse ‘ser da natureza’, percebido de maneira tão grandiosa quanto os pais fantasiados da infância, evoca sensações complexas e diversas. A nostalgia de um ‘outro onipotente’ e dos tempos nos quais a realidade toda era ‘dada’ e nada restava que ser buscado pode associar-se a um alívio da angústia, já que as capacidades do homem ficam recusadas, fora de seu campo de percepção. Ele torna, então, ao destino de pré-determinação natural e desresponsabiliza-se da qualidade de sua existência. Em uma perspectiva social, uma pandemia global, que sinaliza risco de adoecimento e morte a todos, parece implicar, a princípio, em redução das diferenças habitualmente observadas entre as pessoas. O efeito psíquico no indivíduo pode ser o de alívio das tensões relacionadas à competitividade e a sentimentos de inveja.

Ainda no contexto da grandiosidade do ‘ser da natureza’, a ameaça de destruição pode ser vivida também com grande pavor paralisante, em especial se o homem se sente incapaz de fazer qualquer coisa para lidar com o perigo que o ameaça. São os casos nos quais, seja de momento ou de caráter duradouro, o sentido de possuir algum controle psíquico sobre a condição se mostra bastante enfraquecido.

Quando os dois lados do embate podem ser reconhecidos, com seus devidos potenciais, torna-se possível fazer uso da capacidade representativa humana e perceber a realidade de forma mais completa. A sensação de se ter algum controle sobre a vida se fortalece. É bem verdade que a angústia se estabelece e impacta, pois o embate não fica, como nas situações anteriores, resolvido com a negação ou recusa de uma das partes. A realidade representada mais totalmente é passível de análises, compreensões, transformações. Assim é que se tenta encontrar uma vacina; se propõem e implementam medidas de controle da disseminação do vírus; toda uma sociedade se articula – movimentos solidários se fazem mais presentes. A crise instaurada pelo vírus, como outras crises da História, se converte em oportunidade de desenvolvimento de novas tecnologias científicas e sociais para um melhor viver.

Em nível individual, muitas mudanças são requeridas – o sujeito precisa se isolar; sua rotina de trabalho modifica; já não conta com as atividades de lazer costumeiras; não encontra mais familiares ou pessoas queridas; processos sociais que envolvam aglomeração de pessoas ficam impedidos, como até mesmo os velórios e sepultamentos. E como em toda mudança importante, mecanismos psíquicos de luto são acionados. Sobrevém a necessidade de abandonar os hábitos antigos para possibilitar a construção de novas maneiras de existir. A tecnologia de nosso tempo, e seus melhoramentos decorrentes do contexto pandêmico, vem funcionando como expressão dessas novas maneiras. Mas sim, também não há luto sem dor e sentimentos de tristeza, raiva, medo, desesperança são naturais e esperados. Para algumas pessoas pode parecer mesmo impossível desligar-se de seu mundo anterior e elas acabam mais sujeitas a adoecimentos do espectro clínico das depressões.

Uma situação curiosa, que vem sendo observada com frequência nos tempos de quarentena, é o fenômeno dos ‘superprodutivos’. Os indivíduos assim denominados aparentam ‘não parar’, se envolvem em inúmeras atividades, preenchem os dias com sequências de compromissos, mesmo isolados em casa. Eles podem dar a falsa impressão de estarem adaptados, quando, de fato, podem estar sofrendo de uma ‘compulsão’ por manterem as mentes ocupadas. O vazio, a solidão, o medo que a pandemia inevitavelmente evoca têm sua realidade obliterada pelas ocupações sucessivas. Percebe-se aí um sentido psicológico de autodefesa para um comportamento de tal espécie.

Voltando ao ‘palco’ da pandemia, ao corpo, nele é onde se esperam encontrar as expressões mais marcantes de angústia e padecimento. Isso também porque as experiências psíquicas potenciais associadas ao contexto pandêmico podem ser ‘demais’ para a mente do sujeito e provocarem-lhe algo como um ‘curto-circuito’ momentâneo. Algumas pessoas já apresentam uma tendência, constituída durante seus processos de desenvolvimento mental, de serem menos capazes de utilizar a mente como instrumento para representação e elaboração dos fenômenos corporais. Nestes curtos-circuitos, é como se a mente ‘desligasse’, embora, na superfície, ela aparente estar funcionando normalmente. Acontece somente que algumas experiências acabam sem representação, sem expressão através dela e, sem esse caminho psíquico, acabam por se descarregar, de forma direta, no corpo. Tem sido frequente observar pessoas queixarem-se de ‘ansiedade, angústia’, principalmente com sintomas físicos. Quando se lhes questionam os contextos psíquicos relacionados, elas pouco ou nada têm a dizer. Muitas vezes nem a pandemia é referida de um jeito mais significativo. E algumas chegam mesmo a adoecerem das maneiras as mais diversas. Algumas vertentes da psicanálise, que enfatizam a importância do cuidado em saúde mental para manutenção e recuperação da própria saúde física, baseiam-se em observações como essas.

Relevante frisar que a variedade de reações e manifestações psíquicas descritas podem compor o leque de manifestações da dita vida psíquica normal. Pessoas mentalmente saudáveis podem experimentar momentos de negação dos riscos, alternados com instantes de medo intenso e paralisante; podem se sentirem consoladas de insatisfações crônicas, quando a pandemia lhes rouba o protagonismo; ou ainda, não sem expressar dificuldades, podem buscar e encontrar adaptações e mudanças para conviverem com o novo contexto. Um dos verdadeiros sentidos da patologia mental consiste na cristalização, no engessamento das manifestações psíquicas em uma só forma. A flexibilidade e a plasticidade pessoal, nesses casos, ficam perdidas.

Daí a atenção, tão necessária na rotina e mais ainda em tempos de graves ameaças ao sujeito humano, para a mente e os aspectos de seu funcionamento. Ela constitui a mais definitiva marca do ‘ser da cultura’, justamente naquilo que diferencia o homem do restante dos outros animais. Para realizar o potencial humano de desvencilhar-se dos destinos impostos pela natureza – agora com o coronavírus - a cada momento, faz-se essencial o investimento nesse ‘ser da cultura’, na mente e sua capacidade representativa. Quem sabe assim se conseguem manter perenes os caminhos que convertem toda crise em oportunidades de crescimento e construção de novas formas de existir.         
        
        
      


domingo, 12 de julho de 2020

Dark e a psicanálise



Esse texto trata-se de uma tentativa de transpor para o papel algumas reflexões sobre Psicanálise despertadas pela série Dark, da Netflix. Ele contém SPOILER: se você não assistiu à série toda talvez convenha parar por aqui, inclusive porque há de fazer falta o conhecimento dos fatos disparadores destas ideias. Cabe a ressalva de que Dark não é uma obra inspirada diretamente em teorias psicanalíticas. Pensadores como Nietzsche, Schopenhauer e Einstein, mais do que Freud, por exemplo, parecem exercer influência decisiva sobre o sistema de pensamento fundamental da série. Em tudo o que é humano, no entanto, se pode encontrar matéria para reflexões psicanalíticas, ainda mais onde se concentram temas tão profundos e essenciais como as questões do desejo, do sofrimento, da repetição, da temporalidade e as tentativas humanas de manejar essas questões.

Para manter o embalo da série, sempre a insistir que o começo é o fim e o fim é o começo, iniciaremos as reflexões pela solução final apresentada, no último episódio, para esclarecer a existência dos dois mundos de Dark. O trauma experimentado pelo personagem Tannhaus, com a morte de sua família – o filho, a nora e sua netinha – em um acidente de carro, aparece como a ‘dor que forja o desejo’ do cientista (mais sobre as relações entre dor e construção do desejo será debatido mais adiante). Seguindo Tannhaus, ele passa a tentar encontrar meios de superar os limites impostos pelo Tempo, retroceder no passado e assim evitar o trágico acidente. Como homem de Ciência, é decerto natural que ele busque esses meios cientificamente e uma ‘máquina do tempo’ é construída. O intento sai mal, entretanto, e a máquina acaba dividindo o mundo em dois: o mundo de Jonas/Adam e o mundo de Martha/Eva. Ambos os mundos se caracterizam pela possibilidade de realizar viagens no Tempo e entre os seus espaços paralelos. Curiosamente, a odisseia dos dois mundos, após sucessivas e quase intermináveis repetições de ciclos, nos quais ‘tudo acontecia conforme já houvesse acontecido antes’, termina por conseguir restaurar o mundo original de Tannhaus, evitando a ocorrência que vitimizou sua família.

Pois bem: uma estória tão fantasiosa, no melhor sentido do gênero da ficção científica, que poderia ter a ver com psicanálise? Os personagens centrais – Jonas/Adam e Martha/Eva – também são marcados por perdas muito significativas. Mais ainda: evoluem, em suas existências, tentando encontrar meios de reparar as perdas. As viagens no Tempo e entre os universos paralelos passam a constituir o meio mais significativo para as tentativas de reparação. Rapidamente, os personagens, antes enamorados um do outro, se opõem. Para ele, reparar passa a ter o sentido de destruir, de acabar com a existência humana e sua cadeia infindável de repetições e sofrimento. Para ela, passa a ter o sentido de impedir o êxito de seu amante e salvar seu filho, mesmo que isto signifique perpetuar os ciclos de repetições.

Não parece um tanto curioso o fato de Tannhaus, Jonas e Martha compartilharem sofrimentos e destinos reparadores razoavelmente parecidos? Sem dúvidas, se poderia argumentar que sofrimentos e destinos reparadores são comuns a toda a humanidade e essa ressalva merece ser considerada, talvez, como uma irrefutável contestação às ideias que virão a seguir. Mas quanto às viagens no Tempo? E as tentativas concretas de retroceder ao passado e mudar o rumo de fatos traumáticos? E o desejo de coabitar em tempos e mundos paralelos onde as perdas não teriam ocorrido como ocorreram? A ideia que se insinua aqui e só indiretamente se depreende da narrativa é sobre a existência de um ‘terceiro mundo’, na série o ‘mundo original’, que dá origem e sentido – significado - às existências e às aparências dos demais mundos. Ou seria ao acaso ou desprovido de sentido que Jonas se pusesse a viajar entre os vários anos, portando uma máquina do Tempo? Ou mesmo que o desfecho da série e a dissolução dos mundos coincidisse com a dissolução do trauma de Tannhaus? A psicanálise ensina que os acasos e as coincidências não existem para quem sabe da existência do Inconsciente. Sim, o Inconsciente, tal como teorizado por Freud, seria uma espécie de ‘mundo original’, como o de Tannhaus, a conferir sentido e significado às experiências dos homens. O mundo de Tannhaus e seu trauma não apenas dá origem aos demais mundos. Ele também influencia decisivamente os acontecimentos, os movimentos dos personagens, seus desenvolvimentos, as aparências que esses mundos têm, tudo. É como também ensina o mito da caverna de Platão: o mundo tal qual o percebemos são, na verdade, apenas sombras de formas originárias intangíveis.

E esse mundo, do Inconsciente, ele tem mecanismos de funcionamento bastante peculiares que, somente aos poucos, a psicanálise vai desvendando. Freud, por exemplo, descobriu que o trauma divide a mente (pasmem, assim como aconteceu com o mundo de Tannhaus) em duas partes: uma vive um tipo de ‘ilusão’, negando a existência do trauma, enquanto a outra considera sua realidade. As duas partes se põem em oposição, em conflito perene por toda a existência do sujeito. Influências e marcas de ambas as partes podem ser identificadas na vida psíquica e na maneira como o mundo e seus objetos são percebidos por cada um de nós. Dessa maneira, a psicanálise também demonstra como as experiências traumáticas são um destino comum a todos os humanos e como vêm a ser constitutivas de seus mundos.

Outro fator decisivo na série e de extrema importância em psicanálise é o tema da repetição. Os diversos ciclos de tempo são ditos a repetir-se infinitamente. Diálogos inteiros parecem ocorrer de novo e de novo entre personagens em tempos diversos. O sentimento de deja vu, bastante citado, fica ainda mais claro na sensação produzida no expectador das repetições insistentes, apresentadas como inescapáveis, como uma compulsão a repetir, e sim este é um conceito psicanalítico observado por Freud. Existe uma tendência, nos homens, a reproduzir os mesmos papeis nos relacionamentos que estabelece, ao longo da vida. Ele tende a procurar (e, melhor dizendo, tende a encontrar) pessoas e coisas com as quais pode estabelecer um padrão razoavelmente estereotipado de relação. O ‘roteiro’ se vai repetindo em cada relação, não importando muito as distâncias temporais entre elas. Em Dark, as viagens no Tempo dão a essas repetições um sentido muito concreto. Na sequência dos episódios, se vai descobrindo que as relações do adolescente Ulrich Nielsen, por exemplo, com o comissário Egon Tiedemann, em 1986, já estavam influenciadas pelo encontro entre o adulto Ulrich e o jovem comissário Tiedemann, em 1953. A desconfiança do comissário para com o adolescente e até mesmo seu interesse por uma citação contida num disco ouvido por Ulrich, em seu quarto, soam como ecos de um tempo remoto.

Claro que no mundo atual (ainda, talvez) não é possível trafegar entre tempos diversos. Mas a ideia de reencontrar pessoas ou coisas significativas (vamos utilizar o termo ‘objetos’, mais conhecido da psicanálise) do passado está longe de ser estranha entre os analistas. Para estes, todo encontro com o objeto é, na realidade, um ‘reencontro’. Isso porque uma propriedade definitiva do inconsciente é a sua atemporalidade. Passado e presente coexistem simultaneamente no inconsciente de tal maneira que alguém que venha a ser objeto do desejo, do interesse do sujeito, na verdade, costuma representar outros objetos significativos, de outros tempos. O objeto do presente guarda traços de semelhança sinalizadores de sua relação com objetos antigos e, por isso, a psicanálise pode demonstrar essa tendência humana em repetir os mesmos padrões de relacionamento, seja qual for o tempo. Para o inconsciente, os intercâmbios temporais não apenas existem, mas constituem uma de suas regras de funcionamento mais essenciais.       
        
Falar do Inconsciente como um ‘outro mundo’, a estruturar, conformar e dar sentido a outros mundos, como o das nossas consciências, faz referência a uma outra ideia com frequência reverberada na série. ‘Não somos livres nas nossas atitudes, porque não somos livres nos nossos desejos, não conseguimos ir contra aquilo que está dentro de nós’. Muitas vezes, acreditamos querer alguma coisa e nos espantamos ao seguir a exata direção oposta. Há uma diferença entre o ‘querer’, correspondente à percepção consciente do desejo, e o desejo de fato, aquele do inconsciente, tão profundamente dentro de nós. E esse desejo profundo é tão poderoso que pouco podemos fazer contra seus desígnios. No fim das contas, isso torna os homens, como lembra a série, ‘sujeitos descentrados’.

Retomando as relações entre o ‘forjar esse desejo profundo e a dor’, a psicanálise destaca que esse ‘forjar’ vai se dando gradualmente, no processo de desenvolvimento da mente, quando o sujeito vai podendo reconhecer a existência de ‘um outro que lhe falta’. Tal reconhecimento corresponde ao descobrimento do objeto significativo, que ocorre comumente nos primeiros anos de vida. Daí a importância conferida por Freud à infância. Embora pareça uma descoberta banal aos olhos adultos, tão inebriados pela lógica racional, ela põe termo a um desejo humano tão fundamental quanto primitivo: o da autobastância. Em si, isso já constitui um ‘grande e doloroso trauma’ e justo ele provoca aquela divisão da mente, nas duas partes referidas antes. As duas partes brigarão o resto da vida e deixarão suas marcas indeléveis na vida do sujeito. Diversos são os caminhos que podem ser tomados pelos conflitos entre as duas partes. Uma saída possível (e desejável) é a de que o sujeito reconheça sua condição de incompletude e se torne capaz de conviver com o trauma e a dor. Por este caminho, ele restará condenado a buscar eternamente seu ‘objeto perdido’, ‘a parte que lhe falta’, entre os objetos do mundo. Restará condenado sempre ao esforço da tentativa de ‘reencontrar’ este objeto, não à toa, tão parecido com as imagens construídas em sua mente, na infância, pelas figuras e ideais dos pais.

Tannhaus, entretanto, toma rota distinta. Incapaz de conviver com o trauma e a dor, seu desejo imperioso o convence da possibilidade de recusá-los, de apagar a ambos, dor e trauma. Ele se convence da realidade das viagens no Tempo-espaço e da possibilidade de impedir o acidente e ‘ressuscitar os mortos antes que estes houvessem morrido’. Nesta perspectiva, Dark pode ser compreendida como a concretização delirante do desejo de Tannhaus, ricamente representado por múltiplos personagens e suas vicissitudes, com ‘os dois mundos lutando entre si’. O mundo de Martha/Eva a lutar pela ‘manutenção dos mundos’, ou seja, pela ilusão da ‘sobrevivência do filho’; e o mundo de Jonas/Adam, fortemente identificado com a dor e o trauma das perdas, com evidentes expressões de melancolia, a querer pôr fim a tudo pelo suicídio. É interessante como na última temporada da série o filho de Martha e Jonas fica apresentado como o ‘nó’, como ‘a origem’ dos mundos. Mas será que esse filho não representa o ‘outro’, o de Tannhaus, cuja morte consiste exatamente na experiência traumática que criará aqueles dois mundos? Não seria esta, de fato, a origem de tudo? Outro detalhe: Tannhaus, nos dois mundos, aparece mais como um personagem secundário, alguém a quem os projetos do livro e da ‘máquina do Tempo’ chegam passivamente do futuro. Ele mesmo se define como um ‘homem do presente’ que ‘não se interessa em retornar ao passado’. Uma definição bastante contraditória, considerando a solução final exibida. Poderia ela estar a serviço de um tipo de ‘disfarce’, cujo sentido seria manter Tannhaus alienado de seu trauma e suas intenções fundamentais relacionadas?

O último episódio apresenta esse final, que na verdade é o começo. Até então os dois mundos duelavam por seus intentos e tudo que havia era o resultado, um tipo de ‘mistura’, de suas influências. Jonas/Adam nunca pôde suicidar-se. Martha/Eva mantinha a ‘ilusão’ de poder salvar ‘o filho’. Foi Cláudia Tiedemann quem, conseguindo afastar-se do cenário concreto, da realidade da briga entre os dois, quem pôde vislumbrar ‘um outro mundo’. E isso tem tudo a ver com psicanálise. O analista será aquele a tentar se desvencilhar dos fatos concretos da vida e das crenças que o analisando transmite sobre si e sua realidade, buscando contato com esse ‘outro mundo’, o do Inconsciente. Quando aponta a existência do Inconsciente, o analista propõe ‘outros sentidos possíveis’ para as percepções do analisando, os quais não podiam ser percebidos antes. Isso acontece porque o Inconsciente existe e ele é o ‘outro mundo’ a dar origem e significado às experiências imediatamente conscientes do sujeito.

Quando Cláudia Tiedemann revela a existência do ‘terceiro mundo’, o ‘nó’ já pode ser desfeito e os ciclos de repetição incessante já podem ser transformados. Na série é como se o delírio de Tannhaus alcançasse êxito e seu trauma acabasse sendo mesmo apagado juntamente com os ‘dois mundos’ expressivos de seu sofrimento interior, como se essas dores nunca tivessem ocorrido. Em psicanálise, isso é bem diferente. Não é função do tratamento analítico (e não seria possível se o fosse) ‘apagar’ a experiência do trauma e da dor. Tudo que faz o analista é o esforço de ‘apresentar’ o analisando ao ‘outro mundo’, ou seja, apresentá-lo a sua ‘dor’, ‘ao seu trauma’, que conforma e dá sentido ao seu mundo real perceptivo. Quando assistimos ao último episódio de Dark, pensamos: ‘ah, então era isso o tempo todo’. Sim, afinal o trauma originário estava ali o tempo todo, desde o começo, embora só nos tenha sido apresentado no final. Está aí uma outra demonstração de que em psicanálise, como em Dark, o fim é o começo e o começo é o fim.

Naturalmente, a revelação do Inconsciente para o analisando não produz somente esse sentimento de compreensão e alívio. Pelo contrário, ao colocar o sujeito cada vez mais em contato com seus traumas profundos, a psicanálise provoca ‘crise, perturbação’. Também se imagine que desvelar para o analisando ‘um outro mundo’, um mundo até então desconhecido e inacessível, detona nele uma série de questionamentos sobre suas percepções atuais. Ele fica perdido, sem saber afinal, quem ele é. O analista é treinado para entender e acolher essas perturbações, proporcionando ao sujeito um contato gradativo, porém cada vez maior, com essa outra realidade. O processo analítico vai então enriquecendo a mente do analisando com um conhecimento crescente de si próprio. Os traumas e as dores vão ficando menos recusados, o sujeito vai podendo conviver mais com eles, a aceitá-los como parte integrante do seu ser. As partes da mente com seus respectivos mecanismos de manejá-los, de se defender deles, vão se dando mais a conhecer também, a se fazerem compreender mais mutuamente e assim diminuir a intensidade dos conflitos entre si. No fim, ao invés de apagado, o trauma pode restar ‘ressignificado’: ele pode ganhar outros sentidos, diferentes daqueles tão rígidos e cristalizados nas repetições monótonas, paralisantes e tantas vezes incompreensíveis dos sintomas.

Assim, quem sabe, ao término de uma análise, como ao término de Dark, um ‘novo mundo’ possa surgir das crises, dos questionamentos. Um mundo mais rico, mais autêntico, menos dividido e mais compreensível. Um mundo onde o trauma não fique tão ‘de fora’ das percepções, a submeter o sujeito a um destino final de sofrimento repetitivo e alienante. Mas que seja vivenciado, cada vez mais ‘de dentro’, como um ‘ponto de partida’ para o desbravamento de ‘novos mundos’ e possibilidades de existir.

sábado, 4 de julho de 2020

As vitrines



Eu te vejo sair por aí
Te avisei que a cidade era um vão
-Dá tua mão
-Olha pra mim
-Não faz assim
-Não vai lá não
Os letreiros a te colorir
Embaraçam a minha visão
Eu te vi suspirar de aflição
E sair da sessão, frouxa de rir
Já te vejo brincando, gostando de ser
Tua sombra a se multiplicar
Nos teus olhos também posso ver
As vitrines te vendo passar
Na galeria
Cada clarão
É como um dia depois de outro dia
Abrindo um salão
Passas em exposição
Passas sem ver teu vigia
Catando a poesia
Que entornas no chão


‘As vitrines’ é das músicas de Chico de que mais gosto. Impressiona a habilidade do compositor em construir personagens tão complexos sob a estrutura de versos e canções. ‘As vitrines’ me parece falar de um personagem assim e tipicamente um ‘voyeur’. Voyeur, na verdade, constitui o termo atribuído aos praticantes do ‘voyeurismo’ ou ‘escopofilia’, um tipo de perversão sexual, na qual o gozo, o prazer sexual, é obtido pela ação de ‘ver’, de ‘olhar’ os órgãos ou comportamentos sexuais alheios. De preferência, uma ação de ver insuspeitada, sem que o outro a perceba. Um olhar invasivo e desautorizado, de fato.
A música é permeada de expressões verbais com referências diretas e indiretas à ação do olhar, do primeiro ao último verso. ‘Eu te vejo; Olha pra mim’; ‘Embaraçam a minha visão; ‘Eu te vi suspirar...’; ‘Já te vejo brincando...’; ‘Nos teus olhos também posso ver as vitrines te vendo passar’; ‘Passas em exposição’; ‘Passas sem ver teu vigia. Os leitores poderiam retrucar: mas não se percebe nenhuma referência a órgãos ou comportamentos sexuais na letra. Do contrário, o personagem da música parece trazer mais um sentimento de queixa, de pesar, enquanto observa os movimentos da mulher amada.
Sim e aí entram alguns conceitos importantes emprestados pela psicanálise. Nosso personagem não seria um perverso clássico, dos que se masturbam, às escondidas, espiando frestas de portas e janelas de seu objeto de desejo. Ele seria mais uma espécie de ‘voyeur às avessas’, ou um ‘voyeur negativo’, como talvez diria Freud, quando teorizou que as neuroses corresponderiam ao ‘negativo das perversões’. O sujeito de ‘As vitrines’ seria, então, um neurótico, cuja única maneira de obter alguma quota de satisfação sexual (e aqui entenda-se o sexo não em seu sentido concreto, mas da maneira ampliada, conforme introduzida pela psicanálise) é ligando-se ao prazer ‘pelo seu lado negativo’, ou ‘pelo lado do contrário’. E por qualquer razão desconhecida, nosso personagem o faz através do ato de ver, olhar e espiar, inadvertidamente e sem plena ciência de seu objeto sexual, a mulher da canção.
Tal mecanismo, em psicanálise, de tomar ‘pelo lado negativo’ ou ‘pelo lado contrário’ pode ter sentidos bastante diversos. Sem dúvidas, ele parece disfarçar, ocultando o sentido do prazer sexual até mesmo para o próprio sujeito, que se faz mais consciente do lado do pesar e do sofrimento. Ele ‘disfarça’, ainda que a expressão da satisfação se faça notar de outras formas. ‘Algum ganho’ se pode suspeitar pela fixidez com a qual ele se liga ao ato e ao objeto, traduzida nas múltiplas variações do ‘ver’ e do ‘olhar’ a mulher amada, e na repetição monótona dessas ações, dia após dia, intuída no verso ‘cada clarão é como um dia depois de outro dia’. E a atmosfera de encantamento e adoração que a canção transborda parece também denunciar o sintoma de apaixonamento. Do nosso personagem por sua mulher amada, mas também o nosso próprio apaixonamento – nossos, dos ouvintes-expectadores - por ambos os personagens e pelas estórias que as cenas desenrolam. Quase podemos ‘ver’ mesmo as cenas – a cidade, a sessão de cinema, as vitrines, a galeria, um personagem à sombra a seguir os passos de uma mulher vistosa, dona de si e de seus movimentos. Somos levados a ‘nos encantar’ com os cenários urbanos e, de repente, somos nós quem desfrutamos voyeuristicamente dessas imagens.
E como não se encantar desse amor aparentemente tão incondicional, humilde e submisso, que parece mais do que tolerar, até mesmo adorar cada passo, cada movimento do objeto amado? E se, como é, de fato nos encantamos, então talvez compartilhemos, pelo menos enquanto ouvimos os versos e acordes da canção, da mesma neurose de nosso personagem. Um tipo de apaixonamento assim, que remete a graus intensos de platonismo, parece consistir em traço humano e universal. Um encantamento de tal monta por um amor assim poderia expressar uma espécie de desejo em ser amado ou amar dessa forma? Em acreditar nesse tipo de amor?
Na canção a mulher parece ser a dona dos movimentos. O sujeito, encantado, apenas a olha e segue por aí, pelas ruas da cidade. Ela é quem decide o que fazer, para onde ir. Nosso personagem parece resignar-se passivamente ao destino trágico dos enamorados platônicos de ‘catar a poesia’ que o outro entorna no chão. Ele parece estar ao chão, como as sombras multiplicadas. Ora, um dos sentidos do disfarce neurótico então não poderia ser este, de disfarçar as ações do próprio sujeito? De disfarçar a intencionalidade de seu olhar e esconder, numa imagem de amor puro e ideal, o prazer e o gozo sexual que ele frui? Ao posar de amante resignado à sombra, não estaria ele talvez temeroso de que suas intenções viessem à luz? Ou mesmo não poderia ele temer assumir a posição de sujeito e arriscar ‘ser visto’ pela sua amada?
Nosso personagem não ama a mulher real da canção. Ama a mulher que esta representa e que habita as instâncias ideais de sua mente. Ama a sua própria ideia de mulher ideal, portanto. Perigoso seria aproximar-se dessa mulher real, de fato, e quem sabe descobrir que a mulher idealizada não existe. E ainda mais: que ele mesmo, a fonte daquele amor puro e desinteressado não pode existir em uma relação humana. Prefere viver só, à sombra, escondido e submisso, a descobrir a existência de um outro diferente da própria ideia ideal que guarda de si. Existir como sombra de seu objeto sexual pode conferir-lhe alguma satisfação no encantamento que aufere do objeto e de si mesmo nesse papel, além de proteger-lhe de descobertas bastante dolorosas. Uma solução com a qual nós, neuróticos e avessos às ‘perversões’, com frequência desejosos dos disfarces ‘mais puros’, ainda mais se nos prometem amores incondicionais e livres do risco das separações reais, costumamos simpatizar.
‘Ah, mas na primeira estrofe o sujeito tenta se aproximar da mulher, suplicando-a que o veja, que não se vá, então ele tenta se aproximar dela’. A primeira estrofe, na verdade, parece trazer falas apenas do sujeito, de maneira que há dúvidas se se trata de um diálogo genuíno ou de um monólogo interior. Mesmo que o sujeito se dirigisse diretamente à amada, a forma de seu relato ratifica a concepção de seu objeto como algo inalcançável, sempre escapável e, portanto, ausente como realidade. Um diálogo concreto na primeira estrofe não modifica os papeis e os sentidos do objeto para o sujeito, enquanto vivenciados por este. Ele se mantém à sombra, passivo, encantado. A intuição mais precisa sugere que ele nem mesmo se percebe escutado pela amada. E sendo este o estado das coisas, fica difícil falar de aproximação com o objeto e de um diálogo.
Nesse sentido, ‘As vitrines’, enquanto título da canção, parece também fazer referência a uma espécie de existência na qual ‘só se vê passar’. O sujeito mesmo fica preso na redoma neurótica de suas fantasias e encantamentos.