Um dos mais importantes
psicanalistas da atualidade, Wilfred Bion, propôs um questionamento acerca do
valor atribuído aos sonhos sonhados enquanto dormimos. Para ele, deveria haver
algum sentido psíquico para a atitude geral de desqualificar as realidades
vivenciadas nos sonhos.
Freud, ao fundar a psicanálise em
1900, postulou que os sonhos constituiriam um meio pelo qual o psiquismo
realizaria os desejos não realizados durante a vida de vigília. Um sentido
proposto por ele para a tendência de esquecermos facilmente dos sonhos – e
talvez também para a atitude de subestimar seu valor – consistiria nas
consequências psíquicas de ficarmos conscientes de nossos desejos e frustrações.
Alguns sonhos, no entanto,
parecem lutar contra essa tendência de serem esquecidos e se impõem, com
insistência, no nosso dia-dia. Na onda de tantos outros filmes e obras
artísticas, ‘A monster calls’
destaca-se por colocar as vivências oníricas no centro da narrativa, trazendo à
tona correlações de sentido entre elas e a vida de vigília.
O personagem principal, Conor
O’Malley, um pré-adolescente inglês, tem um recorrente pesadelo: seu mundo está
desmoronando, enquanto segura, desesperado pela mão, a sua mãe, prestes a
precipitar-se num abismo. Conor acorda sempre neste ponto e, como não pudesse
sonhar o restante do sonho, não mais consegue voltar a dormir.
Também se nos apresenta a vida
acordada de Conor. Nas primeiras cenas, ele aparece como um jovem prestimoso, a
fazer o próprio café e cuidar da casa. Sua mãe sofre de câncer, embora ele
expresse intensa confiança em seu tratamento e recuperação. Na escola, é vítima
do assédio e violência de alguns colegas de classe e parece responder
passivamente a essas investidas. Há ainda a figura da avó cujas intervenções
junto à condição da mãe lhe provocam sentimentos de raiva e irritação.
A narrativa vai evoluindo a
partir da influência sobre Conor de uma outra experiência onírica. Um monstro
assustador, sob a forma de uma árvore, surge-lhe - em devaneio, uma espécie de
sonho acordado - com a intenção de contar a ele três estórias e a exigência de
que, ao final, Conor lhe revelasse a quarta, a estória de seu pesadelo. De
início, o jovem zomba do monstro, fruto de seus sonhos e imaginação. Mas ouve,
de réplica, a seguinte pergunta: ‘como saber se a própria vida vivida não é
também um sonho’?
A sinopse e a pergunta podem até
dar a impressão de que ‘A monster calls’
trata-se de um filme bobo para crianças. As profundas experiências emocionais
vividas por Conor refletem o oposto. O expectador fica tomado por elas através
das diversas dimensões dos sonhos do personagem: seu pesadelo durante o sono,
seus devaneios e sua vida acordada.
Vai ficando evidente, por exemplo,
que o otimismo do jovem com o tratamento da mãe não se mostra tão
inquestionável como parecia. Embora não pareça admiti-lo mais diretamente,
algumas expressões de Conor dão sinal de sua desconfiança. Ele pergunta mais de
uma vez à mãe, por exemplo, se ela não lhe gostaria de contar alguma coisa.
A figura da avó, no entanto,
parece concentrar mais os sentimentos de desconfiança e hostilidade do menino.
Psicologicamente, talvez ela representasse melhor os riscos relacionados ao
adoecimento materno, com suas constantes e rígidas intervenções. A perspectiva
de perder a mãe e ir morar com a avó era difícil de ser encarada e Conor a
repelia com irritação. Seu pai, por outro lado, parecia-lhe amoroso e
compreensivo, mas o jovem se ressentia de não encontrar espaço no ‘outro país’
onde o pai morava com uma nova família.
O amadurecimento do personagem e
sua ‘revelação final’ vai sendo construída na relação com o ‘monstro’ de seu
devaneio. A recusa e o medo iniciais vão dando lugar à demanda – Conor passa a desejar
as conversas com o ser fantástico. As estórias contadas por ele aparecem
permeadas de paixões, perdas e personagens complexos, que não são o que
aparentam ser, afinal. ‘As estórias são criaturas selvagens’, adverte o
monstro, e aquelas, contadas entre os dois, já estavam produzindo efeitos sobre
o garoto.
Passamos a acompanhar as
transformações do personagem. Sua agressividade, antes mais contida, agora
expressa-se com intensidade. Ele destrói a sala cheia de relíquias da avó. E
esmurra seu colega abusador, mandando-o para o hospital. O jovem prestimoso e
passivo vai podendo vivenciar outras experiências, outras maneiras de ser ele
mesmo. Vai se dando conta também de seu desejo de punição e da complexidade dos
sentimentos e das estórias que o habitam. É quando a parte do sonho não
sonhado, aquela mesma interrompida de seu pesadelo, vai podendo ser vivida.
A atitude compreensiva do monstro
e dos outros personagens de seu sonho desperto contribuem para que Conor
vivencie suas novas experiências de uma forma menos ameaçadora. O enunciado
final de seu pesadelo, até então não sonhado o coloca definitivamente diante do
‘monstro’ que tentava evitar: ele mesmo e o desejo de livrar-se da incômoda mãe
adoecida. Dar-se conta de uma representação tão desagradável de si não acontece
senão com muita dor. O monstro, porém, já não assusta mais tanto e, consolado
por ele, Conor pode enfim perceber-se como o ser completo e contraditório do
humano.
E pode ficar livre para sonhar outros
sonhos. O pesadelo, afinal, era apenas uma parte de si tentando exprimir-se
contra uma resistência do tamanho da dor que prenunciava. Conor podia estar
agora mais diante da realidade da perda de sua mãe. Estava mais seguro de seu
amor por ela, pois agora conseguia experimentar e compreender mais os sentimentos
hostis que sentia também por ela. E dela pôde se despedir.
De uma outra perspectiva, a parte
não sonhada do pesadelo comunicava a Conor a impossibilidade de ele ‘salvar’ a
mãe. Ela punha termo à onipotência infantil e à ilusão de conservar o laço edipiano
materno, tão universal às crianças e conhecido da psicanálise. Depois do adeus,
seguimos Conor em sua nova vida, seu novo quarto (o mesmo da mãe quando
criança?), com as lembranças maternas como prova de que ela estaria presente na
vida dele, não materialmente e sim como imagem a acompanhá-lo por suas próximas
estórias.
Uma questão fica: o que seria
esse ‘monstro que chama’, que parece reivindicar atenção?
Freud entendia as imagens
oníricas como um produto condensado de várias outras imagens e experiências
emocionais distintas. Talvez o monstro representasse o pesadelo e sua
recorrência, seu clamor por expressão. Talvez representasse a onipotência do
menino, desejoso de ‘ser poderoso’ para curar a mãe. Quem sabe fosse a própria
agressividade contida ou o anseio por uma figura paterna forte e protetora a
guiá-lo num período de aflição. Ou, como referido, esse monstro fosse ele
mesmo, sua parte que queria ‘matar a mãe e seu sofrimento’; sua parte que
representava o fracasso da onipotência e a renúncia dos desejos edípicos.
Como as imagens oníricas, também
as pessoas e coisas da vida desperta funcionam na mente como representantes de
nossas experiências emocionais. Nesse sentido, a vigília não parece tão
diferente dos sonhos. ‘A monster calls’
é, na realidade, um grande chamado para que se preste atenção à vida psíquica.
Em toda sua grandeza e monstruosidade.
A psicanálise faz o mesmo
chamado. Todo bom analista é como um monstro a apresentar ao sujeito suas
partes dolorosas, que não podem ser sonhadas e, por isso, ‘cobram’ apreciação.
Nas cenas finais do filme, Conor descobre seu monstro nos cadernos e nas
estórias da mãe-criança. E fica no ar outras perguntas: será que ela, de alguma
maneira, transferiu para o filho sua capacidade de sonhar? Seria o monstro
também uma representação dessa capacidade?
Essa é toda a esperança de uma
análise. Transferir para um outro a capacidade de sonhar os sonhos não
sonhados. Como no desenho último, sujeito e monstro abraçados.