sexta-feira, 24 de julho de 2020

Pandemia, saúde mental e psicanálise

Há uma preocupação crescente e compreensível com a saúde mental das pessoas nesse contexto de pandemia do novo coronavírus. Nem sequer um continente do globo foi poupado da experiência de adoecimento imposta pelo micro-organismo e todos se questionam sobre os possíveis impactos psíquicos provocados. Há uma gama de sentidos psicológicos que têm influência em sensações subjetivas de bem-estar e no surgimento, agravamento e até mesmo desaparecimento de sintomas psicopatológicos. Vamos tentar conhecê-los e refletir sobre eles à luz de alguns conhecimentos da Psicanálise.

Para começar, está-se falando de uma ‘pandemia’: pan, do grego, significa tudo, todos; e demos, significa povos. Trata-se de uma doença, portanto, que submete ‘todos os povos’ a um risco de adoecimento ou mesmo de morte, como facilmente se tem percebido nos números diários, divulgados, sem descanso, pela imprensa mundial. Mas o que representa, para a mente, estar submetida a alguém ou a alguma ‘coisa’? E estar submetida a uma ‘coisa natural’, um elemento da natureza, produz reflexões adicionais? O que representa estar sob a ameaça de adoecer gravemente ou mesmo poder vir a morrer?


A expressão ‘estar submetida’ evoca, de cara, uma sensação de passividade, de perda do controle. O vírus e sua doença corresponderia a algo ou alguém mais forte, mais poderoso, a dominar o cenário de escolhas. Muito se tem falado, por exemplo, sobre o golpe imposto pelo vírus à vaidade humana e suas ilusões de controle, o que é verdade. Todos nós precisamos construir a ideia de que temos algum controle sobre nossas vidas, sobre nossas experiências emocionais. Do contrário acabaríamos paralisados, inertes de medo, incapazes de lidar com os estímulos que nos invadem, de fora e de dentro. Em alguns transtornos mentais, a construção dessa ideia pode ficar prejudicada. Algumas pessoas vivem uma vida inteira sob o domínio de uma fantasia de ameaça descomunal. Elas demandam constantemente a presença de ‘um outro’ para acalmá-las e fazer as escolhas que sentem não poderem fazer sozinhas. Mas mesmo sujeitos saudáveis, sem qualquer diagnóstico psicopatológico, podem vivenciar contextos de vida nos quais o medo, o pavor, torna difícil assumir as escolhas. É quando se deseja que alguém aponte o caminho, o erro. Aliás, no popular, sabe-se bem disso: quando se sofre é quando mais fervorosamente se apela a Deus.

A carência de um controle exterior, de uma força a determinar nossos destinos e escolhas constitui vivência conhecida nossa. Nos primeiros anos de vida do sujeito, enquanto bebê, se experimenta uma total situação de passividade e dependência em relação a um outro, inclusive para a sobrevivência. As necessidades nutricionais precisam ser supridas ‘de fora’. Retornar a um estado de coisas semelhante, quando se espera ter as necessidades prontamente atendidas e nenhum desgaste ou esforço precisa ser feito, sempre nos há de parecer uma solução tentadora. Assim é que a pandemia pode funcionar como ‘esse outro’, essa ‘força maior’ a definir as escolhas, o destino do sujeito. ‘Mas ora’ – protesta-se – ‘desejar estar submetido a algo que nos atenda até se pode compreender, mas como se compreende a ideia de sentir-se ‘bem’ ficando submetido a um destino tão sofrível como a doença e a morte’?

Do ponto de vista psicanalítico, a pandemia tem o potencial de reforçar psiquicamente as fantasias de ligação com esse ‘outro’ poderoso dos primeiros anos e a restituir a posição infantil de ‘passividade’, na qual toda satisfação e sofrimento ficam ‘dados’. Diante de um tal estado de coisas, nada há que ser buscado, tudo já se tem. Tudo já está determinado, prescrito. Desaparece a angústia do não saber, pois este ‘outro’ tudo revelou: é a doença, é a morte. Ainda que duro e sofrível, aqui trata-se de um destino certo, definitivo, cuja possibilidade de mudança não pode ser nem ao menos percebida.  É como se, olhando-se pelo vértice religioso, de repente, o próprio Deus tivesse descido dos céus e anunciado finalmente o destino humano. Que se pode fazer contra Deus? De sorte que algumas pessoas (todas, pelo menos por alguns momentos e circunstâncias) podem experimentar alívio de estarem desresponsabilizadas de suas dores e infortúnios. E de poderem reaver esse ‘tudo’, esse ‘Deus’ familiar de nossa infância e perdido no processo de desenvolvimento psíquico. Em nossa contemporaneidade, quando tanto se fala em ‘falta de sentido’, em ‘crise de identidade’, pode-se compreender como uma experiência como a pandemia tem o potencial de preencher, momentaneamente, esses vazios.

Pode-se traçar um paralelo entre esse estado primitivo do desenvolvimento dos homens e a vida psíquica dos outros animais da natureza. Os animais, como os bebês humanos, estão submetidos aos desígnios naturais. Tudo lhes é ‘dado’ pela natureza. Se há alimentos disponíveis saciam sua fome. Se não há, morrem, não têm escolha. Os bebês humanos, contudo, apresentam potencial de ir bem mais além. Seu amadurecimento psíquico reflete esse potencial. Eles se vão tornando capazes de ‘representar’ o mundo, a natureza, internamente, dentro de si. Para ter a experiência psíquica de um objeto, o homem pode prescindir da sua percepção real e imaginá-lo ou mesmo pensar seus atributos. Tal capacidade lhe é inerente ao corpo, ao seu potencial biológico, e vai sendo desenvolvida pela transmissão da capacidade de representar dos pais e da cultura. Seus instintos, suas demandas corporais, para além de se descarregarem na natureza, encontram caminho na constituição da mente. Na constituição de um aparelho mental que, representando a natureza, se torna apto a entendê-la e a modificá-la.

Se ‘estar submetido’ tem um sentido de conforto e bem-estar para o homem, também parece se pôr em desacordo com seu potencial, a permanência e aceitação passiva de situações de extremo desconforto. Ao ‘descer da árvore’ – para evocar uma perspectiva evolutiva e filogenética – o ‘primeiro homem’ recusou o destino natural dos animais e deu o primeiro passo para a construção de um caminho próprio. Ao fazê-lo, tomou para si as rédeas da existência e assumiu, como sua, a angústia relacionada às insatisfações pessoais. Em psicanálise, a angústia, a dor psíquica, é uma das condições necessárias para a constituição do desejo, que mobilizará o homem na trilha de um caminho de buscas e transformações. Um caminho que hoje a História das civilizações nos pode contar. E recorrentemente ela nos conta dos vários momentos nos quais as ambições humanas, de desvencilhar-se de seus aspectos naturais, chocou-se de frente com uma verdade inexorável. Disse Freud, ‘O ego é, antes de tudo, corporal’. O homem é, antes de tudo, de qualquer representação psíquica, de qualquer esboço de aparelho mental, de qualquer cultura, seu corpo. E também dependem do corpo e dos potenciais naturais que o habitam, seus desenvolvimentos psíquicos e culturais ulteriores.

A pandemia do coronavírus constitui um desses momentos históricos, quando o ‘corpo’ torna a ser o palco do embate entre o ‘ser da natureza’ e o ‘ser da cultura’. Quando Freud constrói a psicanálise, ele analisa em predominância um outro palco, o da mente. Na mente, ambos os seres também travam um duelo, cujo resultado determina uma experiência psíquica mais ou menos saudável e que pode também produzir manifestações corporais. O corpo, em si, é palco de estudo direto das ciências biológicas. Mas num contexto de pandemia, ‘a mente se volta para o corpo’. Tem sido comum, por exemplo, que as pessoas se ponham a observar e vigiar os próprios corpos. A medicina tem dispendido tempo e recursos no esforço de avaliar o corpo, em suas relações com elementos naturais. E é intrigante (e também assustador) pensar como esse corpo que nos é tão familiar é, ao mesmo tempo, um enorme desconhecido. Com a mente, com a Ciência, ao homem é dado conhecer uma parte desse corpo natural, enquanto outra, bastante maior, jaz na absoluta escuridão. E, claro, tudo isso tem impacto na mente que observa, inclusive porque o desfecho desse embate a ameaça de completa destruição.

Assim é que atitudes hoje mais conhecidas como ‘negacionistas’ podem ser compreendidas. ‘É só uma gripezinha’ parece restaurar a ilusão de superioridade do ‘ser da cultura’ e driblar as angústias inerentes a um perigo desconhecido e mortal. Essa ilusão de superioridade costuma ocultar o seu exato oposto: uma fragilidade psíquica significativa, que torna a mente improdutiva face ao inimigo.

De outro modo, esse ‘ser da natureza’, percebido de maneira tão grandiosa quanto os pais fantasiados da infância, evoca sensações complexas e diversas. A nostalgia de um ‘outro onipotente’ e dos tempos nos quais a realidade toda era ‘dada’ e nada restava que ser buscado pode associar-se a um alívio da angústia, já que as capacidades do homem ficam recusadas, fora de seu campo de percepção. Ele torna, então, ao destino de pré-determinação natural e desresponsabiliza-se da qualidade de sua existência. Em uma perspectiva social, uma pandemia global, que sinaliza risco de adoecimento e morte a todos, parece implicar, a princípio, em redução das diferenças habitualmente observadas entre as pessoas. O efeito psíquico no indivíduo pode ser o de alívio das tensões relacionadas à competitividade e a sentimentos de inveja.

Ainda no contexto da grandiosidade do ‘ser da natureza’, a ameaça de destruição pode ser vivida também com grande pavor paralisante, em especial se o homem se sente incapaz de fazer qualquer coisa para lidar com o perigo que o ameaça. São os casos nos quais, seja de momento ou de caráter duradouro, o sentido de possuir algum controle psíquico sobre a condição se mostra bastante enfraquecido.

Quando os dois lados do embate podem ser reconhecidos, com seus devidos potenciais, torna-se possível fazer uso da capacidade representativa humana e perceber a realidade de forma mais completa. A sensação de se ter algum controle sobre a vida se fortalece. É bem verdade que a angústia se estabelece e impacta, pois o embate não fica, como nas situações anteriores, resolvido com a negação ou recusa de uma das partes. A realidade representada mais totalmente é passível de análises, compreensões, transformações. Assim é que se tenta encontrar uma vacina; se propõem e implementam medidas de controle da disseminação do vírus; toda uma sociedade se articula – movimentos solidários se fazem mais presentes. A crise instaurada pelo vírus, como outras crises da História, se converte em oportunidade de desenvolvimento de novas tecnologias científicas e sociais para um melhor viver.

Em nível individual, muitas mudanças são requeridas – o sujeito precisa se isolar; sua rotina de trabalho modifica; já não conta com as atividades de lazer costumeiras; não encontra mais familiares ou pessoas queridas; processos sociais que envolvam aglomeração de pessoas ficam impedidos, como até mesmo os velórios e sepultamentos. E como em toda mudança importante, mecanismos psíquicos de luto são acionados. Sobrevém a necessidade de abandonar os hábitos antigos para possibilitar a construção de novas maneiras de existir. A tecnologia de nosso tempo, e seus melhoramentos decorrentes do contexto pandêmico, vem funcionando como expressão dessas novas maneiras. Mas sim, também não há luto sem dor e sentimentos de tristeza, raiva, medo, desesperança são naturais e esperados. Para algumas pessoas pode parecer mesmo impossível desligar-se de seu mundo anterior e elas acabam mais sujeitas a adoecimentos do espectro clínico das depressões.

Uma situação curiosa, que vem sendo observada com frequência nos tempos de quarentena, é o fenômeno dos ‘superprodutivos’. Os indivíduos assim denominados aparentam ‘não parar’, se envolvem em inúmeras atividades, preenchem os dias com sequências de compromissos, mesmo isolados em casa. Eles podem dar a falsa impressão de estarem adaptados, quando, de fato, podem estar sofrendo de uma ‘compulsão’ por manterem as mentes ocupadas. O vazio, a solidão, o medo que a pandemia inevitavelmente evoca têm sua realidade obliterada pelas ocupações sucessivas. Percebe-se aí um sentido psicológico de autodefesa para um comportamento de tal espécie.

Voltando ao ‘palco’ da pandemia, ao corpo, nele é onde se esperam encontrar as expressões mais marcantes de angústia e padecimento. Isso também porque as experiências psíquicas potenciais associadas ao contexto pandêmico podem ser ‘demais’ para a mente do sujeito e provocarem-lhe algo como um ‘curto-circuito’ momentâneo. Algumas pessoas já apresentam uma tendência, constituída durante seus processos de desenvolvimento mental, de serem menos capazes de utilizar a mente como instrumento para representação e elaboração dos fenômenos corporais. Nestes curtos-circuitos, é como se a mente ‘desligasse’, embora, na superfície, ela aparente estar funcionando normalmente. Acontece somente que algumas experiências acabam sem representação, sem expressão através dela e, sem esse caminho psíquico, acabam por se descarregar, de forma direta, no corpo. Tem sido frequente observar pessoas queixarem-se de ‘ansiedade, angústia’, principalmente com sintomas físicos. Quando se lhes questionam os contextos psíquicos relacionados, elas pouco ou nada têm a dizer. Muitas vezes nem a pandemia é referida de um jeito mais significativo. E algumas chegam mesmo a adoecerem das maneiras as mais diversas. Algumas vertentes da psicanálise, que enfatizam a importância do cuidado em saúde mental para manutenção e recuperação da própria saúde física, baseiam-se em observações como essas.

Relevante frisar que a variedade de reações e manifestações psíquicas descritas podem compor o leque de manifestações da dita vida psíquica normal. Pessoas mentalmente saudáveis podem experimentar momentos de negação dos riscos, alternados com instantes de medo intenso e paralisante; podem se sentirem consoladas de insatisfações crônicas, quando a pandemia lhes rouba o protagonismo; ou ainda, não sem expressar dificuldades, podem buscar e encontrar adaptações e mudanças para conviverem com o novo contexto. Um dos verdadeiros sentidos da patologia mental consiste na cristalização, no engessamento das manifestações psíquicas em uma só forma. A flexibilidade e a plasticidade pessoal, nesses casos, ficam perdidas.

Daí a atenção, tão necessária na rotina e mais ainda em tempos de graves ameaças ao sujeito humano, para a mente e os aspectos de seu funcionamento. Ela constitui a mais definitiva marca do ‘ser da cultura’, justamente naquilo que diferencia o homem do restante dos outros animais. Para realizar o potencial humano de desvencilhar-se dos destinos impostos pela natureza – agora com o coronavírus - a cada momento, faz-se essencial o investimento nesse ‘ser da cultura’, na mente e sua capacidade representativa. Quem sabe assim se conseguem manter perenes os caminhos que convertem toda crise em oportunidades de crescimento e construção de novas formas de existir.         
        
        
      


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