sábado, 10 de abril de 2010

De onde vem a calma



(Marcelo Camelo)

De onde vem a calma daquele cara?
Ele não sabe ser melhor, viu?
Como não entende de ser valente?
Ele não saber ser mais viril
Ele não sabe não, viu?
Às vezes dá como um frio
É o mundo que anda hostil
O mundo todo é hostil

De onde vem o jeito tão sem defeito?
Que esse rapaz consegue fingir
Olha esse sorriso tão indeciso
Tá se exibindo pra solidão
Não vão embora daqui
Eu sou o que vocês são
Não solta da minha mão
Não solta da minha mão

Eu não vou mudar não
Eu vou ficar são
Mesmo se for só
Não vou ceder
Deus vai dar aval sim
O mal vai ter fim
E no final assim calado
Eu sei que vou ser coroado
Rei de mim.

A música do Marcelo Camelo, decerto confusa para muitos, revela uma simples verdade da alma da personagem da letra.

Os primeiros versos da obra, a começar pelo próprio título, fazem pensar um pouco da intenção do autor ao compor a canção. Ele parece tencionado a observar, de princípio, uma “outra pessoa”, dotada de uma “calma” sobrecomum, objeto de análise na música. Interessante perceber que essa tal “calma” não é, no entanto, encarada como uma característica positiva por esse observador externo; pelo contrário, o autor não chega a invejar a calma, mas diminuí-la, como se essa calma, excessiva, que não se sabe de onde vem, fosse a causa de uma certa “frieza” e talvez certa “passividade” da pessoa observada. Sim, e à essa impressão do autor, de uma “calma negativa”, parece somar-se uma outra de que o mesmo assume, já de cara, a postura de o “grande defensor”, o advogado de defesa da personagem retratada. Ora, o verso interrogativo inicial “Ele não sabe ser melhor, viu?” junto ao verso conclusivo “Ele não saber ser mais viril, Ele não sabe não, viu?” trazem, à imaginação dos expectadores da obra, uma possível cena onde encontram-se, de um lado, uma pessoa ou mesmo um grupo ou instituição com ares acusatórios e inquisidores por sobre o comportamento e a tal “calma” da personagem observada, enquanto do outro lado parece haver o próprio autor, arguindo e justificando o comportamento dessa dada personagem. Vejam se os versos finais da primeira estrofe não acabam por representar uma justa defesa, quando o autor resposabiliza o mundo e sua hostilidade pelas questionadas qualidades de seu réu...

A segunda estrofe da música guarda sua primeira metade com características de conteúdo algo semelhantes às de toda estrofe precedente, mas com uma diferença crucial: o tom daquela “cena imaginada” (alguém que acusa x alguém que defende) apresenta agora um tom mais de condenação mesmo e ironia. É uma “perfeição fingida” e um “sorriso indeciso”, revelando a ideia de que a personagem é agora a culpada (não mais o mundo) pelo seu comportamento e que sua atitude global de frieza, falta de virilidade e ação, seu medo do mundo refletem certa “preferência” ou “escolha” mesmo pela solidão.

Entretanto, é justo nessa hora que acontece a grande virada (e sacada) da letra. O autor abandona a posição de observador e chama para si a primeira pessoa... e faz isso de um jeito desesperado, em versos denunciadores de seu medo e desamparo: “Não vão embora daqui, Eu sou o que vocês são. Não solta da minha mão”. Talvez nessa mudança brusca de tendência do texto resida o grande fator de confusão da música, embora seja esta a hora de seu aspecto mais esclarecedor. Considerando os quatro últimos versos da segunda estrofe, com todas as dúvidas de interpretação que eles despertam, deva-se então, perguntar: Quem é o autor? Quem é a personagem observada? Quem a defende? Quem será que a condena?

A cena do acusador e do advogado, outrora imaginada, volta pois, transformada, quando considerados esses questionamentos. Tentemos visualizar a ideia de um espelho... um grande espelho em que alguém (autor e personagem?) se olha e não gosta nada do que vê. De início a imagem observada, fonte de insatisfação, é vista como outra pessoa e suas características são justificadas por fatores externos. Ao mesmo tempo, no seguimento da letra, o observador-imagem deixa de culpar aos outros para enxergar os defeitos daquela imagem como de sua inteira escolha... é quando ele firma seu papel de personagem único da obra, dono da “calma”, da defesa e da acusação e, por ora ali, revelado, nu, ele mostra sua insatisfação consigo mesmo denunciando seu grande desamparo, em um angustiado pedido de socorro: “Não vão embora daqui, eu sou o que vocês são. Não solta da minha mão, não solta da minha mão”.

Após extenso trecho melódico, volta o autor, em tom de voz e características de ritmo diferenciados do resto da canção. Volta, após todo seu trabalho de reconhecimento de si e de sua insatisfação consigo mesmo, aparentemente revigorado (só aparentemente? ficará ele são?), cerrado em seu orgulho e vaidades de não-mudança, mesmo se for pra ficar só, como agora se encontra. [Esta nova postura consiste em forte resistência à necessidade de auto-transformação, imposta pelas suas descobertas frente ao espelho. Tal postura de “retorno” à vaidade é muito comum e até esperada em qualquer começo de processo de mudança interior. A continuidade dessa tentativa de auto-conhecimento pode quebrar essa defesa posteriormente, e provocar, gradualmente, a abertura e transformação desejadas pelo autor].

No final da música a personagem ainda traz para si crenças e pensamentos mágicos para reforçar sua postura de resistência às mudanças, com o esperado “aval divino” e o “fim do mal”. Ele encerra a canção na certeza de que, no final, será coroado rei de si mesmo, certeza essa embasada em pura crença, sem qualquer argumento racional, como fortalecimento da sua posição de inercia. Essa é pois a simples verdade da alma da personagem: sua baixa auto-estima, reconhecida no processo sequencial da letra, que por fim fica rejeitada, num retorno a uma pseudo-vaidade de defesa contra um processo de transformaçao iniciado.

Linda obra... de uma sensibilidade e inteligência vistas em poucos compositores da atualidade.

quinta-feira, 18 de março de 2010

Balada de Gisberta



(Pedro Abrunhosa)

Perdi-me do nome,
Hoje podes chamar-me de tua,
Dancei em palácios,
Hoje danço na rua.
Vesti-me de sonhos,
Hoje visto as bermas da estrada,
De que serve voltar
Quando se volta p’ró nada.

Eu não sei se um Anjo me chama,
Eu não sei dos mil homens na cama
E o céu não pode esperar.
Eu não sei se a noite me leva,
Eu não ouço o meu grito na treva,
E o fim vem-me buscar.

Sambei na avenida,
No escuro fui porta-estandarte,
Apagaram-se as luzes,
É o futuro que parte.
Escrevi o desejo,
Corações que já esqueci,
Com sedas matei
E com ferros morri.

Eu não sei se um Anjo me chama,
Eu não sei dos mil homens na cama
E o céu não pode esperar.
Eu não sei se a noite me leva,
Eu não ouço o meu grito na treva,
E o fim vem-me buscar.

Trouxe pouco,
Levo menos,
E a distância até ao fundo é tão pequena,
No fundo, é tão pequena,
A queda.
E o amor é tão longe,
O amor é tão longe… (…)
E a dor é tão perto.

Gisberta é uma canção que fala sobre a morte. A morte, na hora exata em que ela ocorre, quando parece distante o amor e qualquer sentimento de consolo, sobrevindo a dor, física e emocional. Trata-se de uma obra de rara sensibilidade em que o autor se transporta à pele da personagem Gisberta, uma transexual brasileira, prostituta, morta a pauladas por 14 jovens em Portugal, tendo agonizado por 48 horas no fundo de um fosso até o seu último dia.

Mas ainda que não se soubesse da relação da música com fatos reais, certamente, à compreensão da letra, não restaria dúvidas de que se trata de uma canção referente à morte. O refrão constitui clara expressão de como o autor pôde compreender os minutos finais de Gisberta. Ela, em meio a lúcidos momentos reflexivos, experimenta, no refrão, uma espécie de “confusão mental” perfeitamente adequada ao estado afetivo em que, imaginamos, encontra-se alguém à beira do sumiço derradeiro. Percebe-se, na letra, alteração em diversas funções psíquicas provavelmente derivadas da angústia extrema produzida pela dor, pela incerteza da hora e pela sensação de abandono da personagem. Ela não sabe se um anjo a chama, não sabe se a noite a leva... fala de um grito surdo e traz ali os mil homens com quem esteve outrora na cama... tudo isso, diante de um fim praticamente imediato, traduzindo uma mistura de ideias, memórias, sensações, medo. Esse é o momento da não lucidez da morte de Gisberta, que alterna e contrasta com os outros instantes da música onde abstrações subjetivas, recordações e conclusões assumem um racionalismo maduro que, talvez, ocorram ao ser somente uma vez na vida, por ocasião de sua morte.

É justo o tom mais reflexivo quem canta o resto da canção. Nos primeiros versos, Gisberta discursa sobre a passagem para a morte, tomando para si o colorido da desilusão. Perde-se do nome (e da vaidade do nome), despe-se dos sonhos. Prefere a rua aos palácios onde antes dançara e não está em outro lugar a não ser nas “bermas” da estrada (no Brasil o termo “bermas” não é muito utilizado e siginifica os fossos laterais de umas estrada – local onde fora encontrado o corpo da personagem). Gisberta é pois, agora, do mundo, da realidade presente... não mais das ilusões e dos orgulhos que enfeitam os corpos vivos. Estes, Gisberta agora chama de “nada” quando questiona, no último verso da primeira estrofe: “De que vale voltar quando se volta pro nada?”. Talvez a indagação de Gisberta oculte, no fundo, certo despeito por não poder mais viver nem vivenciar as coisas próprias dos vivos, mas decerto este constitui o tipo de questionamento universal, próprio da hora de todas as mortes.
É possível, ainda, que com essa anulação de si mesma numa verdadeira “entrega” para o mundo, pouco antes de morrer, Gisberta antecipe, racionalmente, seu futuro imediato, consequência de toda a morte: dissolver-se no mundo, no real, como se fosse uma coisa só, afinal, seu “eu” esvair-se-á do espaço, sua carne diluir-se-á na terra e seus vapores miturar-se-ão ao ar. Eis o que se pode inferir (e viajar também) dos primeiros acordes da balada de Gisberta.

Na segunda estrofe da música, as recordações ganham espaço na letra. O samba e a avenida trazem a fantasia da porta-estandarte que evapora com o devir do futuro... nos últimos versos, impressionante é a criatividade da ironia de Gisberta: em meio aos devaneios da inscrição de seu desejo, ela “brinca” por ter matado com “sedas”, numa nítida referência às sedas dos lençóis na cama onde muitos homens esgotaram-se de prazer em seus braços, em contraposição aos ferros que causaram sua morte. Trocadilho de gênio, de quem conhece sua língua e a arte de transmitir ideias e emoções com as palavras.

Mas se já até esse ponto a obra emociona, é no final que o texto adquire seu teor mais precioso e melancólico. A reflexão última da música sintetiza, com força extrema, a mensagem de Gisberta. “No fundo é tão pequena, a queda”... A distância da vida, do nome e dos sonhos da personagem até o fundo do fosso, onde agora jaz o seu corpo morto, essa distância, para Gisberta, é pequena, sinalizando, para ela, a brevidade da vida, a futilidade dos esforços e a efemeridade das ilusões. É quando Gisberta, tomada pela dor dessa revelação somada a dor física da agressão sofrida, procura por qualquer sentimento consolador. Em vão. Gisberta conclui sua vida com a forte sensação de suas derradeiras premissas. “O amor é tão longe e a dor é tão perto”.

A tristeza dos acordes de “Balada de Gisberta” são, de fato, espelho da comoção pública perante um assassinato cuja causa provável consiste no preconceito. É, também, em última instância, a tristeza que identifica os seres humanos uns com os outros através de seu fim comum e de sua consciência específica de pensar a morte e o processo de morrer.

Foto de Gisberta:

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

O Mundo é um Moinho



(Cartola)

Ainda é cedo, amor
Mal começaste a conhecer a vida
Já anuncias a hora de partida
Sem saber mesmo o rumo que irás tomar

Preste atenção, querida
Embora eu saiba que estás resolvida
Em cada esquina cai um pouco a tua vida
Em pouco tempo não serás mais o que és

Ouça-me bem, amor
Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos, tão mesquinho.
Vai reduzir as ilusões a pó

Preste atenção, querida
De cada amor tu herdarás só o cinismo
Quando notares estás à beira do abismo
Abismo que cavaste com os teus pés


Essa belíssima canção de Cartola vai como um recado. Um recado de alguém que terrivelmente agora sente a famosa dor do abandono; a dor de ser deixado por um alguém a quem se deposita grande consideração.

Ainda que não se saiba que nesta música o grande Cartola falava senão à sua filha, não fica difícil inferir, pela letra, que é desejo do autor encarnar uma “sapiência” superior da qual o destinatário da canção não compartilha. Quem já experimentou na pele a dor de ser abandonado conhece exatamente a sensação e a razão de cada uma das palavras que o poeta emprega. “Ser deixado de lado”, “preterido”, “abandonado” constitui seguramente o maior dos golpes à vaidade humana. O maior. E, é decerto impossível sobreviver ileso a ele.

A maturidade do autor conseguiu, no entanto, fazer despender todo seu grito de dor de forma poética e com palavras, diga-se de passagem, amenas. O golpe no ego é tão forte que a reação inicial consiste em buscar dentro de si a qualificação exata que o coloque e o mantenha numa posição acima de seu algoz. Cartola se apropria de sua “sabedoria de vida” para relembrar ao outro de sua inexperiência; refere-se ao outro como um alguém que nem bem começou a viver e já anuncia a hora de ir embora e lhe deixar. Mais ainda: o poeta se veste de sua característica de “mais vivido” para prenunciar um futuro de desilusão ao outro: um futuro quando sonhos e amores levarão ao abismo inevitável, cavado pela própria impaciência e insapiência juvenis de quem recebe seu recado. Cartola, em verdade, reaciona ao abandono como fazem muitas pessoas no mundo inteiro. Quem nunca ouviu (ou disse) expressões corriqueiras como “eu sou mais eu”, “vai sofrer, pois nunca arranjará ninguém como eu” ou ainda, “ninguém nunca cuidará de você como eu cuido”.

Essas expressões servem como método de reafirmação do ego diante das perdas e frustrações pessoais. Elas condensam o principal de duas funções da linguagem nesses momentos: a primeira, o mecanismo de extravasamento de toda mágoa e toda raiva associados à representação de quem vai embora e, a segunda, o processo de comunicar, implicitamente nesse caso, a tentativa última de convencer a pessoa que quer ir, a ficar.

Prestando-se bem atenção à letra, percebe-se que Cartola exercita as funções de linguagem mencionadas com sua canção. Ele enaltece a importância dos seus vários anos de vida, como conhecedor da vida, e prediz o destino de quem o abandona, quase como uma maldição velada, disfarçada em música, em poesia, como só os grandes mestres sabem fazer. E, por que não pensar que seria essa sua boa chance de imputar medo nas expectativas do outro e assim poder trazê-lo de volta para sanar de vez a causa de sua dor.

Com toda certeza, a sabedoria e a experiência de vida de Cartola não o impediram de sentir o que é universal – a dor do adeus de quem quer ir para longe. Mas, sem dúvida, a sabedoria e a experiência ajudaram-no a não paralisar ante os desencontros... a não chorar uma vida inteira o desgosto... a não se rebelar em contraponto aos agravos da vida, como fazem tantos jovens inexperientes e pessoas de personalidade imatura... ajudaram-no a transformar sua dor em Arte.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Todo o Sentimento



(Chico Buarque e Cristóvão Bastos)

Preciso não dormir
Até se consumar
O tempo da gente.
Preciso conduzir
Um tempo de te amar,
Te amando devagar e urgentemente.

Pretendo descobrir
No último momento
Um tempo que refaz o que desfez,
Que recolhe todo sentimento
E bota no corpo uma outra vez.

Prometo te querer
Até o amor cair
Doente, doente...
Prefiro, então, partir
A tempo de poder
A gente se desvencilhar da gente.

Depois de te perder,
Te encontro, com certeza,
Talvez num tempo da delicadeza,
Onde não diremos nada;
Nada aconteceu.
Apenas seguirei
Como encantado ao lado teu.


“Todo o Sentimento” é uma canção profunda e de uma melancolia conformada que impressionam. Certamente o tema central da obra concentra-se na força devastadora de um tal “Tempo” sobre todo encantado amor de dois personagens em cena. Um deles é o autor, atormentado por uma previsão de fim do sentimento dele pela outra pessoa da música. É ele quem no decorrer das estrofes, irá prevenir-se da dor da continuidade de uma relação sem amor para no futuro reencontrar um outro “Tempo” em que seu sentimento seja novamente possível. Sobre essa temática soam as notas de “Todo o Sentimento”.

Desde os primeiros versos percebe-se a necessidade preemente de o autor viver o mais intensamente possível todo seu sentimento nos instantes que “lhe restam” com a pessoa amada. Sim, que “lhe restam”, pois o decorrer do texto mostra sua crença nítida na força de ‘algo’ capaz de desfazer esse sentimento. Ele espera não dormir até que termine o tempo... ele puxa para si a responsabilidade de amar com ardor, aproveitando cada momento sem pressa, como diz em “te amando devagar e urgentemente”... espera aproveitar ao máximo esses instantes e pretende poder dar à pessoa amada toda a cota de felicidade que puder dar para si, decerto porque ama essa pessoa e decerto também porque antevê o fim - por isso talvez queira recompensá-la desde já por um sofrimento futuro inevitável que, por ora, a outra pessoa não advinha.

Sequencialmente ele fala de um “Tempo”... um “Tempo” que desfez. O autor do texto crê de forma inexorável que o amor, o sentimento, não dura para sempre. Ele sucumbe à força de um “Tempo” – aqui representando possivelmente toda uma série de obstáculos que a rotina e a vida a dois impõem à sobrevivência de uma relação. Talvez outras experiências amorosas anteriores do autor tenham-no levado a identificar-se com essa ideia interior. Mas ele não deixa margem para dúvidas: é inevitável o fim do sentimento e numa intenção solitária, na qual talvez nem ele mesmo acredite tanto, ele diz querer um “Tempo” que refaz... um “Tempo” que coloca no corpo o sentimento outra vez.

Na segunda parte da obra ele reafirma o ‘querer’ até o fim, quando o amor cairá, doente. É aí, ao que parece, que ele toma a resolução de partir mais cedo: ir embora a tempo de soltarem-se os laços que os fazem presos um ao outro. Sim, pois a essa altura, para o autor, foi-se embora o sentimento... o amor caiu doente e ficaram possíveis formas de vínculo que não o “sentir afeto”. Talvez aqui venham à memória algumas estórias de casais que ficam juntos anos e anos por questões de costume, às vezes um senso de responsabilidade demasiado para com a pessoa ou família, outras vezes por convenção social, sentimentos de piedade para com a outra pessoa, filhos e tantos outros motivos perpetuadores de um relacionamento sem amor. De fato, esses tipos de relação existem. Entretanto entra aqui uma indagação importante: não estaria o autor antecipando um fim por um certo medo de que não seja ele mas ela, a outra pessoa, quem ponha o ponto final no relacionamento? Não seria o amor da outra pessoa q ele teme acabar no futuro? Teriam sido decepções amorosas anteriores quem o teriam levado a pensar que todo amor termina? Não sabemos nós identificar na vida cotidiana bonitas estórias de pessoas que se amam até os dias finais de suas vidas?

Prefere o autor, pois, desistir e perder a pessoa amada, para quem sabe lá, depois, em um tempo sem mágoas ou rancores, um “tempo de delicadeza”, ele poder vivenciar uma forma de amor totalmente passional mas sem riscos. Uma forma de amor na qual ele somente espreita, apenas segue fascinado, encantado pela outra pessoa, sem estar verdadeiramente junto... sem temer a possibilidade de sofrer uma desilusão forte (ele já é, antes mesmo, desiludido)... talvez algumas pessoas vejam aqui como se o autor desejasse um novo recomeço... como se naqueles versos do princípio “Pretendo descobrir/ No último momento/ Um tempo que refaz o que desfez/ Que recolhe todo sentimento/ E bota no corpo uma outra vez” estivesse a esperança agora declamada no fim da música... como se ele tentasse de novo amar e ser amado do lado da mesma pessoa a quem abandonou em tempo remoto. Pode ser por aí... é fato. Mas creio que, se foi essa a intenção de quem escreveu a música, não ficou totalmente claro nesse sentido. Parece que o personagem se conformaria em viver só admirando, em seguir assim... sem a intensidade, sem a relação de antes... só perto... só encantado.

Vale ressaltar que as características do autor da música não se referem diretamente aos compositores, claro. Associa-se ao personagem por eles encarnado para compor a temática da canção. Óbvio que todo processo interpretativo é sujeito à viéses de caráter pessoal de quem interpreta e, devem ser compreendidos assim aqui, embora a tentativa inicial seja a de buscar a lógica correta do entendimento da obra pelo texto. De resto, essas são as minhas impressões dessa música fantástica, que tem assinatura clara de Chico... só podia ser dele... desconheço outro compositor que fale de sentimentos tão profundos de um jeito mais poético.