domingo, 12 de julho de 2020

Dark e a psicanálise



Esse texto trata-se de uma tentativa de transpor para o papel algumas reflexões sobre Psicanálise despertadas pela série Dark, da Netflix. Ele contém SPOILER: se você não assistiu à série toda talvez convenha parar por aqui, inclusive porque há de fazer falta o conhecimento dos fatos disparadores destas ideias. Cabe a ressalva de que Dark não é uma obra inspirada diretamente em teorias psicanalíticas. Pensadores como Nietzsche, Schopenhauer e Einstein, mais do que Freud, por exemplo, parecem exercer influência decisiva sobre o sistema de pensamento fundamental da série. Em tudo o que é humano, no entanto, se pode encontrar matéria para reflexões psicanalíticas, ainda mais onde se concentram temas tão profundos e essenciais como as questões do desejo, do sofrimento, da repetição, da temporalidade e as tentativas humanas de manejar essas questões.

Para manter o embalo da série, sempre a insistir que o começo é o fim e o fim é o começo, iniciaremos as reflexões pela solução final apresentada, no último episódio, para esclarecer a existência dos dois mundos de Dark. O trauma experimentado pelo personagem Tannhaus, com a morte de sua família – o filho, a nora e sua netinha – em um acidente de carro, aparece como a ‘dor que forja o desejo’ do cientista (mais sobre as relações entre dor e construção do desejo será debatido mais adiante). Seguindo Tannhaus, ele passa a tentar encontrar meios de superar os limites impostos pelo Tempo, retroceder no passado e assim evitar o trágico acidente. Como homem de Ciência, é decerto natural que ele busque esses meios cientificamente e uma ‘máquina do tempo’ é construída. O intento sai mal, entretanto, e a máquina acaba dividindo o mundo em dois: o mundo de Jonas/Adam e o mundo de Martha/Eva. Ambos os mundos se caracterizam pela possibilidade de realizar viagens no Tempo e entre os seus espaços paralelos. Curiosamente, a odisseia dos dois mundos, após sucessivas e quase intermináveis repetições de ciclos, nos quais ‘tudo acontecia conforme já houvesse acontecido antes’, termina por conseguir restaurar o mundo original de Tannhaus, evitando a ocorrência que vitimizou sua família.

Pois bem: uma estória tão fantasiosa, no melhor sentido do gênero da ficção científica, que poderia ter a ver com psicanálise? Os personagens centrais – Jonas/Adam e Martha/Eva – também são marcados por perdas muito significativas. Mais ainda: evoluem, em suas existências, tentando encontrar meios de reparar as perdas. As viagens no Tempo e entre os universos paralelos passam a constituir o meio mais significativo para as tentativas de reparação. Rapidamente, os personagens, antes enamorados um do outro, se opõem. Para ele, reparar passa a ter o sentido de destruir, de acabar com a existência humana e sua cadeia infindável de repetições e sofrimento. Para ela, passa a ter o sentido de impedir o êxito de seu amante e salvar seu filho, mesmo que isto signifique perpetuar os ciclos de repetições.

Não parece um tanto curioso o fato de Tannhaus, Jonas e Martha compartilharem sofrimentos e destinos reparadores razoavelmente parecidos? Sem dúvidas, se poderia argumentar que sofrimentos e destinos reparadores são comuns a toda a humanidade e essa ressalva merece ser considerada, talvez, como uma irrefutável contestação às ideias que virão a seguir. Mas quanto às viagens no Tempo? E as tentativas concretas de retroceder ao passado e mudar o rumo de fatos traumáticos? E o desejo de coabitar em tempos e mundos paralelos onde as perdas não teriam ocorrido como ocorreram? A ideia que se insinua aqui e só indiretamente se depreende da narrativa é sobre a existência de um ‘terceiro mundo’, na série o ‘mundo original’, que dá origem e sentido – significado - às existências e às aparências dos demais mundos. Ou seria ao acaso ou desprovido de sentido que Jonas se pusesse a viajar entre os vários anos, portando uma máquina do Tempo? Ou mesmo que o desfecho da série e a dissolução dos mundos coincidisse com a dissolução do trauma de Tannhaus? A psicanálise ensina que os acasos e as coincidências não existem para quem sabe da existência do Inconsciente. Sim, o Inconsciente, tal como teorizado por Freud, seria uma espécie de ‘mundo original’, como o de Tannhaus, a conferir sentido e significado às experiências dos homens. O mundo de Tannhaus e seu trauma não apenas dá origem aos demais mundos. Ele também influencia decisivamente os acontecimentos, os movimentos dos personagens, seus desenvolvimentos, as aparências que esses mundos têm, tudo. É como também ensina o mito da caverna de Platão: o mundo tal qual o percebemos são, na verdade, apenas sombras de formas originárias intangíveis.

E esse mundo, do Inconsciente, ele tem mecanismos de funcionamento bastante peculiares que, somente aos poucos, a psicanálise vai desvendando. Freud, por exemplo, descobriu que o trauma divide a mente (pasmem, assim como aconteceu com o mundo de Tannhaus) em duas partes: uma vive um tipo de ‘ilusão’, negando a existência do trauma, enquanto a outra considera sua realidade. As duas partes se põem em oposição, em conflito perene por toda a existência do sujeito. Influências e marcas de ambas as partes podem ser identificadas na vida psíquica e na maneira como o mundo e seus objetos são percebidos por cada um de nós. Dessa maneira, a psicanálise também demonstra como as experiências traumáticas são um destino comum a todos os humanos e como vêm a ser constitutivas de seus mundos.

Outro fator decisivo na série e de extrema importância em psicanálise é o tema da repetição. Os diversos ciclos de tempo são ditos a repetir-se infinitamente. Diálogos inteiros parecem ocorrer de novo e de novo entre personagens em tempos diversos. O sentimento de deja vu, bastante citado, fica ainda mais claro na sensação produzida no expectador das repetições insistentes, apresentadas como inescapáveis, como uma compulsão a repetir, e sim este é um conceito psicanalítico observado por Freud. Existe uma tendência, nos homens, a reproduzir os mesmos papeis nos relacionamentos que estabelece, ao longo da vida. Ele tende a procurar (e, melhor dizendo, tende a encontrar) pessoas e coisas com as quais pode estabelecer um padrão razoavelmente estereotipado de relação. O ‘roteiro’ se vai repetindo em cada relação, não importando muito as distâncias temporais entre elas. Em Dark, as viagens no Tempo dão a essas repetições um sentido muito concreto. Na sequência dos episódios, se vai descobrindo que as relações do adolescente Ulrich Nielsen, por exemplo, com o comissário Egon Tiedemann, em 1986, já estavam influenciadas pelo encontro entre o adulto Ulrich e o jovem comissário Tiedemann, em 1953. A desconfiança do comissário para com o adolescente e até mesmo seu interesse por uma citação contida num disco ouvido por Ulrich, em seu quarto, soam como ecos de um tempo remoto.

Claro que no mundo atual (ainda, talvez) não é possível trafegar entre tempos diversos. Mas a ideia de reencontrar pessoas ou coisas significativas (vamos utilizar o termo ‘objetos’, mais conhecido da psicanálise) do passado está longe de ser estranha entre os analistas. Para estes, todo encontro com o objeto é, na realidade, um ‘reencontro’. Isso porque uma propriedade definitiva do inconsciente é a sua atemporalidade. Passado e presente coexistem simultaneamente no inconsciente de tal maneira que alguém que venha a ser objeto do desejo, do interesse do sujeito, na verdade, costuma representar outros objetos significativos, de outros tempos. O objeto do presente guarda traços de semelhança sinalizadores de sua relação com objetos antigos e, por isso, a psicanálise pode demonstrar essa tendência humana em repetir os mesmos padrões de relacionamento, seja qual for o tempo. Para o inconsciente, os intercâmbios temporais não apenas existem, mas constituem uma de suas regras de funcionamento mais essenciais.       
        
Falar do Inconsciente como um ‘outro mundo’, a estruturar, conformar e dar sentido a outros mundos, como o das nossas consciências, faz referência a uma outra ideia com frequência reverberada na série. ‘Não somos livres nas nossas atitudes, porque não somos livres nos nossos desejos, não conseguimos ir contra aquilo que está dentro de nós’. Muitas vezes, acreditamos querer alguma coisa e nos espantamos ao seguir a exata direção oposta. Há uma diferença entre o ‘querer’, correspondente à percepção consciente do desejo, e o desejo de fato, aquele do inconsciente, tão profundamente dentro de nós. E esse desejo profundo é tão poderoso que pouco podemos fazer contra seus desígnios. No fim das contas, isso torna os homens, como lembra a série, ‘sujeitos descentrados’.

Retomando as relações entre o ‘forjar esse desejo profundo e a dor’, a psicanálise destaca que esse ‘forjar’ vai se dando gradualmente, no processo de desenvolvimento da mente, quando o sujeito vai podendo reconhecer a existência de ‘um outro que lhe falta’. Tal reconhecimento corresponde ao descobrimento do objeto significativo, que ocorre comumente nos primeiros anos de vida. Daí a importância conferida por Freud à infância. Embora pareça uma descoberta banal aos olhos adultos, tão inebriados pela lógica racional, ela põe termo a um desejo humano tão fundamental quanto primitivo: o da autobastância. Em si, isso já constitui um ‘grande e doloroso trauma’ e justo ele provoca aquela divisão da mente, nas duas partes referidas antes. As duas partes brigarão o resto da vida e deixarão suas marcas indeléveis na vida do sujeito. Diversos são os caminhos que podem ser tomados pelos conflitos entre as duas partes. Uma saída possível (e desejável) é a de que o sujeito reconheça sua condição de incompletude e se torne capaz de conviver com o trauma e a dor. Por este caminho, ele restará condenado a buscar eternamente seu ‘objeto perdido’, ‘a parte que lhe falta’, entre os objetos do mundo. Restará condenado sempre ao esforço da tentativa de ‘reencontrar’ este objeto, não à toa, tão parecido com as imagens construídas em sua mente, na infância, pelas figuras e ideais dos pais.

Tannhaus, entretanto, toma rota distinta. Incapaz de conviver com o trauma e a dor, seu desejo imperioso o convence da possibilidade de recusá-los, de apagar a ambos, dor e trauma. Ele se convence da realidade das viagens no Tempo-espaço e da possibilidade de impedir o acidente e ‘ressuscitar os mortos antes que estes houvessem morrido’. Nesta perspectiva, Dark pode ser compreendida como a concretização delirante do desejo de Tannhaus, ricamente representado por múltiplos personagens e suas vicissitudes, com ‘os dois mundos lutando entre si’. O mundo de Martha/Eva a lutar pela ‘manutenção dos mundos’, ou seja, pela ilusão da ‘sobrevivência do filho’; e o mundo de Jonas/Adam, fortemente identificado com a dor e o trauma das perdas, com evidentes expressões de melancolia, a querer pôr fim a tudo pelo suicídio. É interessante como na última temporada da série o filho de Martha e Jonas fica apresentado como o ‘nó’, como ‘a origem’ dos mundos. Mas será que esse filho não representa o ‘outro’, o de Tannhaus, cuja morte consiste exatamente na experiência traumática que criará aqueles dois mundos? Não seria esta, de fato, a origem de tudo? Outro detalhe: Tannhaus, nos dois mundos, aparece mais como um personagem secundário, alguém a quem os projetos do livro e da ‘máquina do Tempo’ chegam passivamente do futuro. Ele mesmo se define como um ‘homem do presente’ que ‘não se interessa em retornar ao passado’. Uma definição bastante contraditória, considerando a solução final exibida. Poderia ela estar a serviço de um tipo de ‘disfarce’, cujo sentido seria manter Tannhaus alienado de seu trauma e suas intenções fundamentais relacionadas?

O último episódio apresenta esse final, que na verdade é o começo. Até então os dois mundos duelavam por seus intentos e tudo que havia era o resultado, um tipo de ‘mistura’, de suas influências. Jonas/Adam nunca pôde suicidar-se. Martha/Eva mantinha a ‘ilusão’ de poder salvar ‘o filho’. Foi Cláudia Tiedemann quem, conseguindo afastar-se do cenário concreto, da realidade da briga entre os dois, quem pôde vislumbrar ‘um outro mundo’. E isso tem tudo a ver com psicanálise. O analista será aquele a tentar se desvencilhar dos fatos concretos da vida e das crenças que o analisando transmite sobre si e sua realidade, buscando contato com esse ‘outro mundo’, o do Inconsciente. Quando aponta a existência do Inconsciente, o analista propõe ‘outros sentidos possíveis’ para as percepções do analisando, os quais não podiam ser percebidos antes. Isso acontece porque o Inconsciente existe e ele é o ‘outro mundo’ a dar origem e significado às experiências imediatamente conscientes do sujeito.

Quando Cláudia Tiedemann revela a existência do ‘terceiro mundo’, o ‘nó’ já pode ser desfeito e os ciclos de repetição incessante já podem ser transformados. Na série é como se o delírio de Tannhaus alcançasse êxito e seu trauma acabasse sendo mesmo apagado juntamente com os ‘dois mundos’ expressivos de seu sofrimento interior, como se essas dores nunca tivessem ocorrido. Em psicanálise, isso é bem diferente. Não é função do tratamento analítico (e não seria possível se o fosse) ‘apagar’ a experiência do trauma e da dor. Tudo que faz o analista é o esforço de ‘apresentar’ o analisando ao ‘outro mundo’, ou seja, apresentá-lo a sua ‘dor’, ‘ao seu trauma’, que conforma e dá sentido ao seu mundo real perceptivo. Quando assistimos ao último episódio de Dark, pensamos: ‘ah, então era isso o tempo todo’. Sim, afinal o trauma originário estava ali o tempo todo, desde o começo, embora só nos tenha sido apresentado no final. Está aí uma outra demonstração de que em psicanálise, como em Dark, o fim é o começo e o começo é o fim.

Naturalmente, a revelação do Inconsciente para o analisando não produz somente esse sentimento de compreensão e alívio. Pelo contrário, ao colocar o sujeito cada vez mais em contato com seus traumas profundos, a psicanálise provoca ‘crise, perturbação’. Também se imagine que desvelar para o analisando ‘um outro mundo’, um mundo até então desconhecido e inacessível, detona nele uma série de questionamentos sobre suas percepções atuais. Ele fica perdido, sem saber afinal, quem ele é. O analista é treinado para entender e acolher essas perturbações, proporcionando ao sujeito um contato gradativo, porém cada vez maior, com essa outra realidade. O processo analítico vai então enriquecendo a mente do analisando com um conhecimento crescente de si próprio. Os traumas e as dores vão ficando menos recusados, o sujeito vai podendo conviver mais com eles, a aceitá-los como parte integrante do seu ser. As partes da mente com seus respectivos mecanismos de manejá-los, de se defender deles, vão se dando mais a conhecer também, a se fazerem compreender mais mutuamente e assim diminuir a intensidade dos conflitos entre si. No fim, ao invés de apagado, o trauma pode restar ‘ressignificado’: ele pode ganhar outros sentidos, diferentes daqueles tão rígidos e cristalizados nas repetições monótonas, paralisantes e tantas vezes incompreensíveis dos sintomas.

Assim, quem sabe, ao término de uma análise, como ao término de Dark, um ‘novo mundo’ possa surgir das crises, dos questionamentos. Um mundo mais rico, mais autêntico, menos dividido e mais compreensível. Um mundo onde o trauma não fique tão ‘de fora’ das percepções, a submeter o sujeito a um destino final de sofrimento repetitivo e alienante. Mas que seja vivenciado, cada vez mais ‘de dentro’, como um ‘ponto de partida’ para o desbravamento de ‘novos mundos’ e possibilidades de existir.

Um comentário:

  1. Texto com uma maravilhosa sequência de ensinamentos. Conseguiu chegar a pontos extremamente importantes da série, no que diz respeito às motivações de ação dos personagens. Muito boa a análise pela perspectiva da psicanálise. Aprendo muito com seus textos. Obrigada por isso.

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