Esse texto trata-se de uma
tentativa de transpor para o papel algumas reflexões sobre Psicanálise
despertadas pela série Dark, da Netflix. Ele contém SPOILER: se você não
assistiu à série toda talvez convenha parar por aqui, inclusive porque há de
fazer falta o conhecimento dos fatos disparadores destas ideias. Cabe a
ressalva de que Dark não é uma obra inspirada diretamente em teorias psicanalíticas.
Pensadores como Nietzsche, Schopenhauer e Einstein, mais do que Freud, por
exemplo, parecem exercer influência decisiva sobre o sistema de pensamento
fundamental da série. Em tudo o que é humano, no entanto, se pode encontrar
matéria para reflexões psicanalíticas, ainda mais onde se concentram temas tão
profundos e essenciais como as questões do desejo, do sofrimento, da repetição,
da temporalidade e as tentativas humanas de manejar essas questões.
Para manter o embalo da série,
sempre a insistir que o começo é o fim e o fim é o começo, iniciaremos as
reflexões pela solução final apresentada, no último episódio, para esclarecer a
existência dos dois mundos de Dark. O trauma experimentado pelo personagem
Tannhaus, com a morte de sua família – o filho, a nora e sua netinha – em um
acidente de carro, aparece como a ‘dor que forja o desejo’ do cientista (mais
sobre as relações entre dor e construção do desejo será debatido mais adiante).
Seguindo Tannhaus, ele passa a tentar encontrar meios de superar os limites impostos
pelo Tempo, retroceder no passado e assim evitar o trágico acidente. Como homem
de Ciência, é decerto natural que ele busque esses meios cientificamente e uma
‘máquina do tempo’ é construída. O intento sai mal, entretanto, e a máquina
acaba dividindo o mundo em dois: o mundo de Jonas/Adam e o mundo de Martha/Eva.
Ambos os mundos se caracterizam pela possibilidade de realizar viagens no Tempo
e entre os seus espaços paralelos. Curiosamente, a odisseia dos dois mundos,
após sucessivas e quase intermináveis repetições de ciclos, nos quais ‘tudo
acontecia conforme já houvesse acontecido antes’, termina por conseguir
restaurar o mundo original de Tannhaus, evitando a ocorrência que vitimizou sua
família.
Pois bem: uma estória tão
fantasiosa, no melhor sentido do gênero da ficção científica, que poderia ter a
ver com psicanálise? Os personagens centrais – Jonas/Adam e Martha/Eva – também
são marcados por perdas muito significativas. Mais ainda: evoluem, em suas
existências, tentando encontrar meios de reparar as perdas. As viagens no Tempo
e entre os universos paralelos passam a constituir o meio mais significativo
para as tentativas de reparação. Rapidamente, os personagens, antes enamorados
um do outro, se opõem. Para ele, reparar passa a ter o
sentido de destruir, de acabar com a existência humana e sua cadeia infindável
de repetições e sofrimento. Para ela, passa a ter o sentido de impedir o êxito
de seu amante e salvar seu filho, mesmo que isto signifique perpetuar os ciclos
de repetições.
Não parece um tanto curioso o
fato de Tannhaus, Jonas e Martha compartilharem sofrimentos e destinos
reparadores razoavelmente parecidos? Sem dúvidas, se poderia argumentar que
sofrimentos e destinos reparadores são comuns a toda a humanidade e essa
ressalva merece ser considerada, talvez, como uma irrefutável contestação às
ideias que virão a seguir. Mas quanto às viagens no Tempo? E as tentativas
concretas de retroceder ao passado e mudar o rumo de fatos traumáticos? E o
desejo de coabitar em tempos e mundos paralelos onde as perdas não teriam
ocorrido como ocorreram? A ideia que se insinua aqui e só indiretamente se
depreende da narrativa é sobre a existência de um ‘terceiro mundo’, na série o
‘mundo original’, que dá origem e sentido – significado - às existências e às
aparências dos demais mundos. Ou seria ao acaso ou desprovido de sentido que
Jonas se pusesse a viajar entre os vários anos, portando uma máquina do Tempo?
Ou mesmo que o desfecho da série e a dissolução dos mundos coincidisse com a
dissolução do trauma de Tannhaus? A psicanálise ensina que os acasos e as
coincidências não existem para quem sabe da existência do Inconsciente. Sim, o Inconsciente, tal como teorizado por Freud, seria
uma espécie de ‘mundo original’, como o de Tannhaus, a conferir sentido e
significado às experiências dos homens. O mundo de Tannhaus e seu trauma não
apenas dá origem aos demais mundos. Ele também influencia decisivamente os
acontecimentos, os movimentos dos personagens, seus desenvolvimentos, as
aparências que esses mundos têm, tudo. É como também ensina o mito da caverna
de Platão: o mundo tal qual o percebemos são, na verdade, apenas sombras de
formas originárias intangíveis.
E esse mundo, do Inconsciente,
ele tem mecanismos de funcionamento bastante peculiares que, somente aos
poucos, a psicanálise vai desvendando. Freud, por exemplo, descobriu que o trauma divide a mente (pasmem, assim
como aconteceu com o mundo de Tannhaus) em duas partes: uma vive um tipo de
‘ilusão’, negando a existência do trauma, enquanto a outra considera sua
realidade. As duas partes se põem em oposição, em conflito perene por toda a
existência do sujeito. Influências e marcas de ambas as partes podem ser
identificadas na vida psíquica e na maneira como o mundo e seus objetos são
percebidos por cada um de nós. Dessa maneira, a psicanálise também demonstra
como as experiências traumáticas são um destino comum a todos os humanos e como
vêm a ser constitutivas de seus mundos.
Outro fator decisivo na série e
de extrema importância em psicanálise é o tema da repetição. Os diversos ciclos de tempo são ditos a repetir-se
infinitamente. Diálogos inteiros parecem ocorrer de novo e de novo entre
personagens em tempos diversos. O sentimento de deja vu, bastante citado, fica ainda mais claro na sensação
produzida no expectador das repetições insistentes, apresentadas como
inescapáveis, como uma compulsão a
repetir, e sim este é um conceito psicanalítico observado por Freud. Existe
uma tendência, nos homens, a reproduzir os mesmos papeis nos relacionamentos que
estabelece, ao longo da vida. Ele tende a procurar (e, melhor dizendo, tende a
encontrar) pessoas e coisas com as quais pode estabelecer um padrão
razoavelmente estereotipado de relação. O ‘roteiro’ se vai repetindo em cada
relação, não importando muito as distâncias temporais entre elas. Em Dark, as
viagens no Tempo dão a essas repetições um sentido muito concreto. Na sequência
dos episódios, se vai descobrindo que as relações do adolescente Ulrich
Nielsen, por exemplo, com o comissário Egon Tiedemann, em 1986, já estavam
influenciadas pelo encontro entre o adulto Ulrich e o jovem comissário
Tiedemann, em 1953. A desconfiança do comissário para com o adolescente e até
mesmo seu interesse por uma citação contida num disco ouvido por Ulrich, em seu
quarto, soam como ecos de um tempo remoto.
Claro que no mundo atual (ainda,
talvez) não é possível trafegar entre tempos diversos. Mas a ideia de
reencontrar pessoas ou coisas significativas (vamos utilizar o termo ‘objetos’,
mais conhecido da psicanálise) do passado está longe de ser estranha entre os analistas.
Para estes, todo encontro com o objeto é, na realidade, um ‘reencontro’. Isso
porque uma propriedade definitiva do inconsciente é a sua atemporalidade. Passado e presente coexistem simultaneamente no
inconsciente de tal maneira que alguém que venha a ser objeto do desejo, do
interesse do sujeito, na verdade, costuma representar outros objetos
significativos, de outros tempos. O objeto do presente guarda traços de
semelhança sinalizadores de sua relação com objetos antigos e, por isso, a
psicanálise pode demonstrar essa tendência humana em repetir os mesmos padrões
de relacionamento, seja qual for o tempo. Para o inconsciente, os intercâmbios
temporais não apenas existem, mas constituem uma de suas regras de
funcionamento mais essenciais.
Falar do Inconsciente como um
‘outro mundo’, a estruturar, conformar e dar sentido a outros mundos, como o
das nossas consciências, faz referência a uma outra ideia com frequência
reverberada na série. ‘Não somos livres
nas nossas atitudes, porque não somos livres nos nossos desejos, não
conseguimos ir contra aquilo que está dentro de nós’. Muitas vezes,
acreditamos querer alguma coisa e nos espantamos ao seguir a exata direção
oposta. Há uma diferença entre o ‘querer’, correspondente à percepção
consciente do desejo, e o desejo de fato, aquele do inconsciente, tão
profundamente dentro de nós. E esse desejo profundo é tão poderoso que pouco
podemos fazer contra seus desígnios. No fim das contas, isso torna os homens,
como lembra a série, ‘sujeitos descentrados’.
Retomando as relações entre o ‘forjar esse desejo profundo e a dor’, a
psicanálise destaca que esse ‘forjar’ vai se dando gradualmente, no processo de
desenvolvimento da mente, quando o sujeito vai podendo reconhecer a existência
de ‘um outro que lhe falta’. Tal
reconhecimento corresponde ao descobrimento do objeto significativo, que ocorre
comumente nos primeiros anos de vida. Daí a importância conferida por Freud à infância.
Embora pareça uma descoberta banal aos olhos adultos, tão inebriados pela
lógica racional, ela põe termo a um desejo humano tão fundamental quanto
primitivo: o da autobastância. Em si, isso já constitui um ‘grande e doloroso
trauma’ e justo ele provoca aquela divisão da mente, nas duas partes referidas
antes. As duas partes brigarão o resto da vida e deixarão suas marcas
indeléveis na vida do sujeito. Diversos são os caminhos que podem ser tomados
pelos conflitos entre as duas partes. Uma saída possível (e desejável) é a de
que o sujeito reconheça sua condição de incompletude e se torne capaz de
conviver com o trauma e a dor. Por este caminho, ele restará condenado a buscar
eternamente seu ‘objeto perdido’, ‘a parte que lhe falta’, entre os objetos do
mundo. Restará condenado sempre ao esforço da tentativa de ‘reencontrar’ este
objeto, não à toa, tão parecido com as imagens construídas em sua mente, na
infância, pelas figuras e ideais dos pais.
Tannhaus, entretanto, toma rota
distinta. Incapaz de conviver com o trauma e a dor, seu desejo imperioso o
convence da possibilidade de recusá-los, de apagar a ambos, dor e trauma. Ele
se convence da realidade das viagens no Tempo-espaço e da possibilidade de
impedir o acidente e ‘ressuscitar os mortos antes que estes houvessem morrido’.
Nesta perspectiva, Dark pode ser compreendida como a concretização delirante do
desejo de Tannhaus, ricamente representado por múltiplos personagens e suas
vicissitudes, com ‘os dois mundos lutando entre si’. O mundo de Martha/Eva a
lutar pela ‘manutenção dos mundos’, ou seja, pela ilusão da ‘sobrevivência do
filho’; e o mundo de Jonas/Adam, fortemente identificado com a dor e o trauma
das perdas, com evidentes expressões de melancolia, a querer pôr fim a tudo
pelo suicídio. É interessante como na última temporada da série o filho de
Martha e Jonas fica apresentado como o ‘nó’, como ‘a origem’ dos mundos. Mas
será que esse filho não representa o ‘outro’, o de Tannhaus, cuja morte
consiste exatamente na experiência traumática que criará aqueles dois mundos? Não
seria esta, de fato, a origem de tudo? Outro detalhe: Tannhaus, nos dois mundos,
aparece mais como um personagem secundário, alguém a quem os projetos do livro
e da ‘máquina do Tempo’ chegam passivamente do futuro. Ele mesmo se define como
um ‘homem do presente’ que ‘não se interessa em retornar ao passado’. Uma
definição bastante contraditória, considerando a solução final exibida. Poderia
ela estar a serviço de um tipo de ‘disfarce’, cujo sentido seria manter
Tannhaus alienado de seu trauma e suas intenções fundamentais relacionadas?
O último episódio apresenta esse
final, que na verdade é o começo. Até então os dois mundos duelavam por seus
intentos e tudo que havia era o resultado, um tipo de ‘mistura’, de suas
influências. Jonas/Adam nunca pôde suicidar-se. Martha/Eva mantinha a ‘ilusão’
de poder salvar ‘o filho’. Foi Cláudia Tiedemann quem, conseguindo afastar-se
do cenário concreto, da realidade da briga entre os dois, quem pôde vislumbrar ‘um
outro mundo’. E isso tem tudo a ver com psicanálise. O analista será aquele a
tentar se desvencilhar dos fatos concretos da vida e das crenças que o analisando
transmite sobre si e sua realidade, buscando contato com esse ‘outro mundo’, o
do Inconsciente. Quando aponta a existência do Inconsciente, o analista propõe ‘outros
sentidos possíveis’ para as percepções do analisando, os quais não podiam ser
percebidos antes. Isso acontece porque o Inconsciente existe e ele é o ‘outro
mundo’ a dar origem e significado às experiências imediatamente conscientes do
sujeito.
Quando Cláudia Tiedemann revela a
existência do ‘terceiro mundo’, o ‘nó’ já pode ser desfeito e os ciclos de
repetição incessante já podem ser transformados. Na série é como se o delírio
de Tannhaus alcançasse êxito e seu trauma acabasse sendo mesmo apagado
juntamente com os ‘dois mundos’ expressivos de seu sofrimento interior, como se
essas dores nunca tivessem ocorrido. Em psicanálise, isso é bem diferente. Não
é função do tratamento analítico (e não seria possível se o fosse) ‘apagar’ a experiência
do trauma e da dor. Tudo que faz o analista é o esforço de ‘apresentar’ o analisando
ao ‘outro mundo’, ou seja, apresentá-lo a sua ‘dor’, ‘ao seu trauma’, que
conforma e dá sentido ao seu mundo real perceptivo. Quando assistimos ao último
episódio de Dark, pensamos: ‘ah, então era isso o tempo todo’. Sim, afinal o
trauma originário estava ali o tempo todo, desde o começo, embora só nos tenha
sido apresentado no final. Está aí uma outra demonstração de que em psicanálise,
como em Dark, o fim é o começo e o começo é o fim.
Naturalmente, a revelação do
Inconsciente para o analisando não produz somente esse sentimento de
compreensão e alívio. Pelo contrário, ao colocar o sujeito cada vez mais em
contato com seus traumas profundos, a psicanálise provoca ‘crise, perturbação’.
Também se imagine que desvelar para o analisando ‘um outro mundo’, um mundo até
então desconhecido e inacessível, detona nele uma série de questionamentos
sobre suas percepções atuais. Ele fica perdido, sem saber afinal, quem ele é. O
analista é treinado para entender e acolher essas perturbações, proporcionando
ao sujeito um contato gradativo, porém cada vez maior, com essa outra
realidade. O processo analítico vai então enriquecendo a mente do analisando
com um conhecimento crescente de si próprio. Os traumas e as dores vão ficando
menos recusados, o sujeito vai podendo conviver mais com eles, a aceitá-los
como parte integrante do seu ser. As partes da mente com seus respectivos
mecanismos de manejá-los, de se defender deles, vão se dando mais a conhecer
também, a se fazerem compreender mais mutuamente e assim diminuir a intensidade
dos conflitos entre si. No fim, ao invés de apagado, o trauma pode restar ‘ressignificado’:
ele pode ganhar outros sentidos, diferentes daqueles tão rígidos e
cristalizados nas repetições monótonas, paralisantes e tantas vezes
incompreensíveis dos sintomas.
Assim,
quem sabe, ao término de uma análise, como ao término de Dark, um ‘novo mundo’
possa surgir das crises, dos questionamentos. Um mundo mais rico, mais
autêntico, menos dividido e mais compreensível. Um mundo onde o trauma não
fique tão ‘de fora’ das percepções, a submeter o sujeito a um destino final de
sofrimento repetitivo e alienante. Mas que seja vivenciado, cada vez mais ‘de
dentro’, como um ‘ponto de partida’ para o desbravamento de ‘novos mundos’ e
possibilidades de existir.
Texto com uma maravilhosa sequência de ensinamentos. Conseguiu chegar a pontos extremamente importantes da série, no que diz respeito às motivações de ação dos personagens. Muito boa a análise pela perspectiva da psicanálise. Aprendo muito com seus textos. Obrigada por isso.
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