sábado, 19 de outubro de 2019

O enigma de Kaspar Hauser




O título escolhido no Brasil ressalta aspectos bem diversos do título original, cuja tradução direta do alemão enuncia “Cada um por si e Deus contra todos”. Enquanto a versão brasileira destaca a atmosfera misteriosa relativa ao personagem principal da obra, o original alemão parece sugerir, já de cara, uma perspectiva social e religiosa como forma de concebê-la. As reflexões deste texto esperam tocar apenas superficialmente nos aspectos sociais e de religião. Tendo como fundamento conceitos da psicanálise, elas partem de dois vértices distintos. O primeiro trata do desenvolvimento psíquico do protagonista, apresentado como, até então, alguém privado de contato humano, a partir de sua ‘aparição no mundo’. O segundo faz uso da estética e retoma alguns sentimentos produzidos no expectador e nos demais personagens, relacionando-os a ideias sobre a natureza do processo psicanalítico e da mente humana.
Logo de início, a plateia é introduzida à problemática do filme, através de um breve escrito e de uma frase um tanto perturbadora: “Esses gritos assustadores ao redor são o que chamam de silêncio”? As cenas iniciais parecem transportar o expectador para um passeio bucólico, de canoa pelo rio, de paisagens tranquilas e naturais, até que imagens de um homem adulto, acorrentado ao chão, sujo, de vestes surradas, a emitir sons e grunhidos incompreensíveis e a manusear um pequeno cavalo de brinquedo, ‘borram’ a sensação de quietude do momento. A realidade surge como um grito assustador a perturbar o silêncio da paisagem idílica. Aquele ser e aquelas condições de existência dizem mais de como vivem animais em cativeiros; nada sobre como vivem os humanos. Sua aparição, nos primeiros instantes, prenuncia toda uma inquietação vivenciada pela comunidade que o acolhe. A sequência de imagens das casas, de uma vila vazia, de pessoas imóveis nas janelas parece transmitir a mesma sensação de silêncio e inércia, cujo ocaso já se anunciara.
Aos poucos, as pessoas da comunidade se vão acercando em torno do ‘estranho ser’ e a curiosidade pelo mistério constitui o fundamento de toda aquela movimentação. Ele fora encontrado numa praça: livro de orações de uma mão e uma carta anônima na outra, a esclarecer a turvação de suas origens. Acumulam-se olhares, indagações, registros e protocolos. Depressa se descobre que, a despeito da passividade do homem e de sua ausência de fala – ele mais parece um boneco moldável, de fácil manipulação, a repetir de maneira estereotipada o que se lhe é dito – ele se mostra capaz de escrever algo. Kaspar Hauser, identificam-lhe, então, um nome. Do alemão, Hauser significa ‘casas’. Kaspar, em português seu equivalente é Gaspar, tem significado bastante revelador quanto ao que representaria o personagem naquela estória. Nome comum na Alemanha, Kaspar significa ‘o portador de tesouros’, ‘aquele que leva tesouros’, ‘aquele que vem ver’.
Um vértice a ser tomado para analisar a película é, de fato, a observação de como as interações de Kaspar com aquele grupo de pessoas se vão desenvolvendo e produzindo efeitos mútuos. Além de se lhe terem atribuído um nome, próprio, seus comportamentos, sentimentos, necessidades lhe vão sendo gradualmente nomeados também. Dizem sobre ele, em sua presença: “É evidente que ele nunca se sentou à mesa”; “ele sempre come pão”; “ele não gostou da sopa”; “o copo está vazio”; “o copo está cheio”. Kaspar vai podendo tornar-se cônscio de uma série de elementos acerca de si mesmo, antes inacessíveis para ele. Em outras palavras, ele vai podendo construir uma mente: um mundo de representações psíquicas que lhe servem de instrumento para conhecer a si e ao mundo. Ele passa a saber dar nome às partes do corpo; tenta aprender alguns versos infantis os quais lhe são definidos ‘muito complexos para ele ainda’. Não à toa são as crianças quem mais despontam na função de ensinar esses conceitos. Elas vivenciam as mesmas experiências e só há pouco adquiriram as primeiras representações mentais. Elaboram ativamente o que fora experimentado apenas de forma passiva na relação com os pais e demais adultos. Kaspar parece realizar o mesmo nas cenas onde aparece alimentando um passarinho; ou ‘fazendo de bípede’ um gato; ou ainda quando segura um bebê. A construção de um mundo representativo passa a ser vivida também como a possibilidade de interagir, de maneiras cada vez mais diversificadas, com a realidade e transformá-la, para muito além de ser somente nutrido ou de emitir ruídos incompreensíveis com um cavalo de brinquedo. A psicanálise – e Bion confere destaque especial à questão com seu conceito de reverie – enfatiza a necessidade de um outro ser humano para ‘criar’ um ser humano, para ‘humanizá-lo’, emprestando-lhe um cabedal de representações adequado e útil para enriquecer e complexificar seu potencial de interagir e transformar sua realidade.
Pari passu à expansão do mundo representacional, Kaspar vai podendo ter acesso a uma gama maior de experiências emocionais, no contexto do convívio com as pessoas. Significativa é a cena na qual segura um bebê e chora, falando à ‘mãe’ do desprezo sofrido pelos outros. No instante anterior, fora zombado por um grupo de jovens com uma galinha, mas talvez ali também falasse, e se faz notória a identificação com o bebê, à sua outra mãe, a primeira, por quem fora desprezado e desamparado tão cedo na vida. As expressões de crescimento no contato humano contrastam com outras, ao longo do filme, em que Kaspar parece evocar os tempos de calabouço. Quando foge, ao ser colocado ao lado de animais e ‘outros enigmas’, como atração circense, é encontrado escondido, encerrado dentro de um diminuto cubículo. Também quando feito de adorno a um lorde inglês de traços afetados e vaidosos, ele volta a manifestar sinais de seu comportamento primitivo e protesta: ‘melhor do que aqui fora’, ao ser questionado sobre a vida no cativeiro. Freud e a psicanálise esclarecem sobre a tendência do aparelho psíquico em retornar a estádios anteriores da mente, com o fim de proteger-se de contextos atuais com potencial de gerar angústia. No calabouço, era mais simples a vida de Kaspar e, embora ‘mais simples’ tenha o sentido de mais precária, de um lado, acaba por ter o sentido de prevenir as agruras inevitáveis do amadurecimento e das relações com os ‘lobos-homens’, de outro.  
Com o personagem do Sr. Daumer, esses contrastes ficam também expostos. Junto a ele, Kaspar desenvolve notáveis habilidades cognitivas – melhora sua escrita; passa a redigir cartas e sua autobiografia; aprende a tocar piano; come, à mesa, com talher. Entretanto, o Sr. Daumer não se parece situar tão sensível e disponível às expressões afetivas de Kaspar, como seu interesse o coloca em relação aos propósitos dos ganhos em cognição. Aliás, como ensina a psicanálise, mesmo os erros lógicos contêm em si significados da experiência emocional. Ao referir o ‘cansaço, a teimosia e a esperteza da maçã’ é certo que Kaspar fazia uso destas representações para expressar a si próprio, seu mundo psíquico, seu cansaço e desejo de ir de encontro ao que lhe era designado. Em outro momento, ao contemplar de fora a torre onde morara, anuncia que esta não podia ser a mesma, pois a outra era muito maior: de seu interior, de onde quer que se olhasse, somente ela se via. Talvez ali o encolhimento da torre representasse as muitas perdas vivenciadas no processo de seu amadurecimento psíquico, como acontece às crianças, em geral, nas transições à vida adulta. O Sr. Daumer, a despeito do grande valor de seu interesse pela educação de Kaspar, valor este determinante para o crescimento do personagem, chegava mesmo a censurar-lhe as queixas. Não sem alguma dose de ironia, uma figura de linguagem bastante presente na obra, ele aponta um jovem apático, afetivamente embotado, como exemplo a ser seguido de alguém submetido aos piores infortúnios sem reclamar.
O outro vértice escolhido para analisar a película considera aspectos da estética, os sentimentos despertados em expectador e demais personagens junto à Kaspar, à luz de reflexões relacionadas à natureza do processo psicanalítico. Freud, em 1919, escreve um artigo, cujo título em português ‘O estranho’, toma como objeto justo um tema da estética – a sensação de estranhamento e horror diante de fenômenos específicos – e o faz associar a conceitos já reconhecidos pela psicanálise, como o retorno de conteúdos reprimidos, da ameaça de castração e de padrões de funcionamento psíquicos há muito superados na maturidade. Que Kaspar provoque sentimentos de estranheza e mistério, o próprio título de ‘enigma’ o enuncia, embora o caráter de horror, neste caso, se mostre ausente desde o início. É provável que a passividade do personagem, aliada às circunstâncias bem peculiares de sua origem e desenvolvimento, expliquem a dificuldade do público, em geral - exceção óbvia às crianças do filme - em identificar-se com ele, em identificá-lo como um semelhante. Tratam-no, com maior frequência, como uma aberração, uma criatura pitoresca a ser examinada em protocolos minuciosos, a ser exposta para entretenimento e zombaria; nada que ver com gente, de fato.
Além de trazer à tona, no entanto, características psíquicas superadas no adulto, Kaspar reflete a marca da ignorância universal quanto a própria origem, seja no âmbito pessoal seja no âmbito da filogênese. Ele revela a condição inexorável do desamparo humano, de sua mórbida fragilidade frente a este desamparo, no caso dele, um desamparo concretizado ao longo de toda uma vida. Nada mais hostil e pesado à vaidade dos homens, sempre esforçados por crer em seu poder e racionalidade. Nada mais compreensível fugir ao horror de se perceber frágil e ignorante, imputando a Kaspar essas virtudes inumanas; ou mesmo doutrinando-o a todo custo. A atualidade e a história se locupletam dos mais variados exemplos de destituição (e destruição) daqueles considerados diferentes, bizarros e inferiores, tão somente por se nos apresentarem como a nossa imagem que desejamos esquecer.
Um outro sentimento digno de exame na obra guarda relação com o mistério e a curiosidade que a existência idiossincrática de Kaspar produz. Tem-se a sensação de um algo inacabado, inconcluso, como em uma narrativa na qual se ficam questionando os sentidos. Talvez o filme termine como a estória de seu personagem, cujo relato lhe fora vedado até que ele pudesse lhe agregar um desfecho. Em seu leito de morte, Kaspar finalmente pode revelar o conto ‘só com o começo’: sobre um deserto; sobre um cego capaz de perceber o que ninguém mais vê; sobre ilusões e montanhas ilusórias que ocultam a oportunidade de novos destinos. Decerto essa sensação de inconclusão se traduz em desconforto. Afinal, quem é este ‘estranho ser’? É com ironia novamente que a questão evolui nas últimas cenas. O personagem dos protocolos, de presença recorrente no desenrolar da trama, sempre com toques irônicos sutis, comemora, triunfante, o registro perfeito do que seria a explicação definitiva para o estranho personagem. Uma explicação anatômica, fruto de cuidadosa autópsia. A ironia denuncia a futilidade da resposta; denuncia a futilidade humana em sua busca por explicações racionais, lógicas, concretas e derradeiras, com o intuito de apartar-se, outra vez, da ignorância. Kaspar constitui-se muito mais como uma pergunta. Um devir; um eterno vir a ser. Um começo, sem um final conhecido, com exceção à própria morte, como em todo homem.
Mas ainda há mais a se dizer sobre sua comunicação última, a sua estória só com o começo. Bion, em seus textos psicanalíticos, reflete sobre o potencial transformador de novas representações para o aparelho psíquico. Para este autor, o vazio, o nada, se compõe de infinitos pensamentos não pensados, a espera de pensadores. O surgimento de uma nova ideia implicaria numa ruptura do equilíbrio inercial da mente, cujos efeitos, irreversíveis para o agente pensante, se fazem notar por meio de perturbações marcantes de seu estado emocional. Kaspar, como ‘o portador de tesouros’, é justo aquele cuja aparição provoca toda uma agitação na paisagem tranquila e imóvel da comunidade. Como ‘aquele que vê’, representa o cego de sua estória, que desvela as cidades escondidas por detrás de ilusórias paisagens desérticas; que desvela os gritos assustadores contidos no silêncio. Ele realiza em si próprio, como expressão de sua humanidade, o constante e infindável processo de construir e reconstruir novas formas de se representar, sempre se perturbando, se ampliando, se transformando, a partir do convívio com o outro humano. O contexto do atentado o qual fatalmente o vitima parece marcar o fato de seu desenvolvimento pessoal: a carta encontrada no local do atentado, ao contrário da primeira que segurava no instante de sua aparição, está assinada, pois já agora, Kaspar era capaz de descrever seu agressor.
Também o processo psicanalítico se define pela ‘aparição’ de novas representações, imagens, ideias, novas formas e vinculações de pensamento, tanto pelo analisando quanto pelo analista, com a propriedade de produzir disrupções e transformações nas existências de ambos. É como uma espécie de começo, de onde o novo, indefinido, pode advir. O enriquecimento psíquico dele resultante, assim como demonstra Kaspar, vai conferindo aos sujeitos acesso às infinitas possibilidades de se fazer representar e de modificar as realidades experimentadas.  

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