O título escolhido no
Brasil ressalta aspectos bem diversos do título original, cuja tradução direta
do alemão enuncia “Cada um por si e Deus
contra todos”. Enquanto a versão brasileira destaca a atmosfera misteriosa
relativa ao personagem principal da obra, o original alemão parece sugerir, já
de cara, uma perspectiva social e religiosa como forma de concebê-la. As
reflexões deste texto esperam tocar apenas superficialmente nos aspectos
sociais e de religião. Tendo como fundamento conceitos da psicanálise, elas
partem de dois vértices distintos. O primeiro trata do desenvolvimento psíquico
do protagonista, apresentado como, até então, alguém privado de contato humano,
a partir de sua ‘aparição no mundo’. O segundo faz uso da estética e retoma
alguns sentimentos produzidos no expectador e nos demais personagens,
relacionando-os a ideias sobre a natureza do processo psicanalítico e da mente
humana.
Logo de início, a
plateia é introduzida à problemática do filme, através de um breve escrito e de
uma frase um tanto perturbadora: “Esses
gritos assustadores ao redor são o que chamam de silêncio”? As cenas
iniciais parecem transportar o expectador para um passeio bucólico, de canoa
pelo rio, de paisagens tranquilas e naturais, até que imagens de um homem
adulto, acorrentado ao chão, sujo, de vestes surradas, a emitir sons e
grunhidos incompreensíveis e a manusear um pequeno cavalo de brinquedo,
‘borram’ a sensação de quietude do momento. A realidade surge como um grito
assustador a perturbar o silêncio da paisagem idílica. Aquele ser e aquelas
condições de existência dizem mais de como vivem animais em cativeiros; nada
sobre como vivem os humanos. Sua aparição, nos primeiros instantes, prenuncia
toda uma inquietação vivenciada pela comunidade que o acolhe. A sequência de
imagens das casas, de uma vila vazia, de pessoas imóveis nas janelas parece
transmitir a mesma sensação de silêncio e inércia, cujo ocaso já se anunciara.
Aos poucos, as pessoas
da comunidade se vão acercando em torno do ‘estranho ser’ e a curiosidade pelo
mistério constitui o fundamento de toda aquela movimentação. Ele fora
encontrado numa praça: livro de orações de uma mão e uma carta anônima na
outra, a esclarecer a turvação de suas origens. Acumulam-se olhares,
indagações, registros e protocolos. Depressa se descobre que, a despeito da
passividade do homem e de sua ausência de fala – ele mais parece um boneco
moldável, de fácil manipulação, a repetir de maneira estereotipada o que se lhe
é dito – ele se mostra capaz de escrever algo. Kaspar Hauser, identificam-lhe,
então, um nome. Do alemão, Hauser significa ‘casas’.
Kaspar, em português seu equivalente é Gaspar, tem significado bastante
revelador quanto ao que representaria o personagem naquela estória. Nome comum
na Alemanha, Kaspar significa ‘o portador
de tesouros’, ‘aquele que leva
tesouros’, ‘aquele que vem ver’.
Um vértice a ser tomado
para analisar a película é, de fato, a observação de como as interações de
Kaspar com aquele grupo de pessoas se vão desenvolvendo e produzindo efeitos
mútuos. Além de se lhe terem atribuído um nome, próprio, seus comportamentos,
sentimentos, necessidades lhe vão sendo gradualmente nomeados também. Dizem
sobre ele, em sua presença: “É evidente que ele nunca se sentou à mesa”; “ele
sempre come pão”; “ele não gostou da sopa”; “o copo está vazio”; “o copo está
cheio”. Kaspar vai podendo tornar-se cônscio de uma série de elementos acerca
de si mesmo, antes inacessíveis para ele. Em outras palavras, ele vai podendo
construir uma mente: um mundo de representações psíquicas que lhe servem de
instrumento para conhecer a si e ao mundo. Ele passa a saber dar nome às partes
do corpo; tenta aprender alguns versos infantis os quais lhe são definidos
‘muito complexos para ele ainda’. Não à toa são as crianças quem mais despontam
na função de ensinar esses conceitos. Elas vivenciam as mesmas experiências e
só há pouco adquiriram as primeiras representações mentais. Elaboram ativamente
o que fora experimentado apenas de forma passiva na relação com os pais e
demais adultos. Kaspar parece realizar o mesmo nas cenas onde aparece
alimentando um passarinho; ou ‘fazendo de bípede’ um gato; ou ainda quando
segura um bebê. A construção de um mundo representativo passa a ser vivida
também como a possibilidade de interagir, de maneiras cada vez mais
diversificadas, com a realidade e transformá-la, para muito além de ser somente
nutrido ou de emitir ruídos incompreensíveis com um cavalo de brinquedo. A
psicanálise – e Bion confere destaque especial à questão com seu conceito de reverie – enfatiza a necessidade de um
outro ser humano para ‘criar’ um ser humano, para ‘humanizá-lo’,
emprestando-lhe um cabedal de representações adequado e útil para enriquecer e
complexificar seu potencial de interagir e transformar sua realidade.
Pari passu à expansão
do mundo representacional, Kaspar vai podendo ter acesso a uma gama maior de
experiências emocionais, no contexto do convívio com as pessoas. Significativa
é a cena na qual segura um bebê e chora, falando à ‘mãe’ do desprezo sofrido
pelos outros. No instante anterior, fora zombado por um grupo de jovens com uma
galinha, mas talvez ali também falasse, e se faz notória a identificação com o
bebê, à sua outra mãe, a primeira, por quem fora desprezado e desamparado tão
cedo na vida. As expressões de crescimento no contato humano contrastam com
outras, ao longo do filme, em que Kaspar parece evocar os tempos de calabouço.
Quando foge, ao ser colocado ao lado de animais e ‘outros enigmas’, como
atração circense, é encontrado escondido, encerrado dentro de um diminuto
cubículo. Também quando feito de adorno a um lorde inglês de traços afetados e
vaidosos, ele volta a manifestar sinais de seu comportamento primitivo e
protesta: ‘melhor do que aqui fora’, ao ser questionado sobre a vida no
cativeiro. Freud e a psicanálise esclarecem sobre a tendência do aparelho
psíquico em retornar a estádios anteriores da mente, com o fim de proteger-se
de contextos atuais com potencial de gerar angústia. No calabouço, era mais
simples a vida de Kaspar e, embora ‘mais simples’ tenha o sentido de mais
precária, de um lado, acaba por ter o sentido de prevenir as agruras
inevitáveis do amadurecimento e das relações com os ‘lobos-homens’, de outro.
Com o personagem do Sr.
Daumer, esses contrastes ficam também expostos. Junto a ele, Kaspar desenvolve
notáveis habilidades cognitivas – melhora sua escrita; passa a redigir cartas e
sua autobiografia; aprende a tocar piano; come, à mesa, com talher. Entretanto,
o Sr. Daumer não se parece situar tão sensível e disponível às expressões afetivas
de Kaspar, como seu interesse o coloca em relação aos propósitos dos ganhos em
cognição. Aliás, como ensina a psicanálise, mesmo os erros lógicos contêm em si
significados da experiência emocional. Ao referir o ‘cansaço, a teimosia e a
esperteza da maçã’ é certo que Kaspar fazia uso destas representações para
expressar a si próprio, seu mundo psíquico, seu cansaço e desejo de ir de
encontro ao que lhe era designado. Em outro momento, ao contemplar de fora a torre
onde morara, anuncia que esta não podia ser a mesma, pois a outra era muito
maior: de seu interior, de onde quer que se olhasse, somente ela se via. Talvez
ali o encolhimento da torre representasse as muitas perdas vivenciadas no
processo de seu amadurecimento psíquico, como acontece às crianças, em geral,
nas transições à vida adulta. O Sr. Daumer, a despeito do grande valor de seu
interesse pela educação de Kaspar, valor este determinante para o crescimento
do personagem, chegava mesmo a censurar-lhe as queixas. Não sem alguma dose de
ironia, uma figura de linguagem bastante presente na obra, ele aponta um jovem
apático, afetivamente embotado, como exemplo a ser seguido de alguém submetido
aos piores infortúnios sem reclamar.
O outro vértice
escolhido para analisar a película considera aspectos da estética, os
sentimentos despertados em expectador e demais personagens junto à Kaspar, à
luz de reflexões relacionadas à natureza do processo psicanalítico. Freud, em
1919, escreve um artigo, cujo título em português ‘O estranho’, toma como objeto justo um tema da estética – a sensação
de estranhamento e horror diante de fenômenos específicos – e o faz associar a
conceitos já reconhecidos pela psicanálise, como o retorno de conteúdos
reprimidos, da ameaça de castração e de padrões de funcionamento psíquicos há
muito superados na maturidade. Que Kaspar provoque sentimentos de estranheza e
mistério, o próprio título de ‘enigma’ o enuncia, embora o caráter de horror,
neste caso, se mostre ausente desde o início. É provável que a passividade do
personagem, aliada às circunstâncias bem peculiares de sua origem e
desenvolvimento, expliquem a dificuldade do público, em geral - exceção óbvia
às crianças do filme - em identificar-se com ele, em identificá-lo como um
semelhante. Tratam-no, com maior frequência, como uma aberração, uma criatura
pitoresca a ser examinada em protocolos minuciosos, a ser exposta para
entretenimento e zombaria; nada que ver com gente, de fato.
Além de trazer à tona,
no entanto, características psíquicas superadas no adulto, Kaspar reflete a
marca da ignorância universal quanto a própria origem, seja no âmbito pessoal
seja no âmbito da filogênese. Ele revela a condição inexorável do desamparo
humano, de sua mórbida fragilidade frente a este desamparo, no caso dele, um
desamparo concretizado ao longo de toda uma vida. Nada mais hostil e pesado à
vaidade dos homens, sempre esforçados por crer em seu poder e racionalidade.
Nada mais compreensível fugir ao horror de se perceber frágil e ignorante,
imputando a Kaspar essas virtudes inumanas; ou mesmo doutrinando-o a todo
custo. A atualidade e a história se locupletam dos mais variados exemplos de
destituição (e destruição) daqueles considerados diferentes, bizarros e
inferiores, tão somente por se nos apresentarem como a nossa imagem que desejamos
esquecer.
Um outro sentimento
digno de exame na obra guarda relação com o mistério e a curiosidade que a
existência idiossincrática de Kaspar produz. Tem-se a sensação de um algo
inacabado, inconcluso, como em uma narrativa na qual se ficam questionando os
sentidos. Talvez o filme termine como a estória de seu personagem, cujo relato
lhe fora vedado até que ele pudesse lhe agregar um desfecho. Em seu leito de
morte, Kaspar finalmente pode revelar o conto ‘só com o começo’: sobre um deserto; sobre um cego capaz de
perceber o que ninguém mais vê; sobre ilusões e montanhas ilusórias que ocultam
a oportunidade de novos destinos. Decerto essa sensação de inconclusão se
traduz em desconforto. Afinal, quem é este ‘estranho ser’? É com ironia
novamente que a questão evolui nas últimas cenas. O personagem dos protocolos,
de presença recorrente no desenrolar da trama, sempre com toques irônicos
sutis, comemora, triunfante, o registro perfeito do que seria a explicação
definitiva para o estranho personagem. Uma explicação anatômica, fruto de
cuidadosa autópsia. A ironia denuncia a futilidade da resposta; denuncia a
futilidade humana em sua busca por explicações racionais, lógicas, concretas e
derradeiras, com o intuito de apartar-se, outra vez, da ignorância. Kaspar
constitui-se muito mais como uma pergunta. Um devir; um eterno vir a ser. Um começo, sem um final
conhecido, com exceção à própria morte, como em todo homem.
Mas ainda há mais a se
dizer sobre sua comunicação última, a sua estória só com o começo. Bion, em
seus textos psicanalíticos, reflete sobre o potencial transformador de novas
representações para o aparelho psíquico. Para este autor, o vazio, o nada, se
compõe de infinitos pensamentos não pensados, a espera de pensadores. O
surgimento de uma nova ideia implicaria numa ruptura do equilíbrio inercial da
mente, cujos efeitos, irreversíveis para o agente pensante, se fazem notar por
meio de perturbações marcantes de seu estado emocional. Kaspar, como ‘o portador de tesouros’, é justo aquele
cuja aparição provoca toda uma agitação na paisagem tranquila e imóvel da
comunidade. Como ‘aquele que vê’,
representa o cego de sua estória, que desvela as cidades escondidas por detrás
de ilusórias paisagens desérticas; que desvela os gritos assustadores contidos no silêncio. Ele realiza em si
próprio, como expressão de sua humanidade, o constante e infindável processo de
construir e reconstruir novas formas de se representar, sempre se perturbando,
se ampliando, se transformando, a partir do convívio com o outro humano. O
contexto do atentado o qual fatalmente o vitima parece marcar o fato de seu
desenvolvimento pessoal: a carta encontrada no local do atentado, ao contrário
da primeira que segurava no instante de sua aparição, está assinada, pois já
agora, Kaspar era capaz de descrever seu agressor.
Também o processo
psicanalítico se define pela ‘aparição’ de novas representações, imagens,
ideias, novas formas e vinculações de pensamento, tanto pelo analisando quanto
pelo analista, com a propriedade de produzir disrupções e transformações nas
existências de ambos. É como uma espécie de começo,
de onde o novo, indefinido, pode advir. O enriquecimento psíquico dele
resultante, assim como demonstra Kaspar, vai conferindo aos sujeitos acesso às
infinitas possibilidades de se fazer representar e de modificar as realidades
experimentadas.
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