(Romulo Fróes / Nuno Ramos)
Porto, é Lisboa ou Salvador
Lindo, é cidade ou é amor
Tento, documento, número
Morto, tá na foto onde eu tô
Lindo, é cidade ou é amor
Tento, documento, número
Morto, tá na foto onde eu tô
Quem nasceu no centro
Quem no fim do mundo
Quem te amou
Quem no fim do mundo
Quem te amou
O teu corpo é o carimbo
Passaporte, passa morte
Olha, um barco cheio que virou
Passaporte, passa morte
Olha, um barco cheio que virou
Tava perto, quase lá
Quase pus meus pés na areia
Quase pus meus pés na areia
Passa, São José do Rio Preto
Pássaro, muro branco, elétrico
Caça, cobre o corpo com areia
Cheira, cão perdido na fronteira
Pássaro, muro branco, elétrico
Caça, cobre o corpo com areia
Cheira, cão perdido na fronteira
Todo dia, todo dia
Um novo dia vem, raiou
Olha a luz, é um globo só
Um só mar, um sol, um ai, um dó
Um verso novo que rimou
Um novo dia vem, raiou
Olha a luz, é um globo só
Um só mar, um sol, um ai, um dó
Um verso novo que rimou
Em Lisboa ou Salvador
Quase pus meus pés na areia
Quase pus meus pés na areia
A conversa de hoje é sobre a música de que mais gosto no novo trabalho da
Mariana Aydar, Cavaleiro selvagem aqui te
sigo. Uma amiga, após descobrir minha predileção, situou-me de sua
admiração pela melodia ressaltando, no entanto, o quanto a letra produzia-lhe
certa confusão.
Porto é, de fato, uma canção confusa. Confusão essa anunciada já no primeiro
verso: uma foto, uma imagem focada pelo autor, de um morto. [“Morto, tá na foto onde eu tô”]. As
palavras carregam em si muitos questionamentos. Seria uma imagem antiga na qual
o autor aparece com outra pessoa ainda viva, porém já agora falecida? Seria a
foto do autor com um defunto? Ou seria, o próprio autor, o morto da gravura?
Talvez não seja necessário procurar a resposta precisa. Todas as possibilidades
encerram a ideia de o autor se ver, dentro de uma cena, com um morto, o que lhe
evoca, por sua vez, a representação de sua própria morte.
A música traz, portanto, o encontro entre o autor e seu morto, ele mesmo,
e toda a atmosfera de sentimentos despertados. A expectativa da morte, como angústia
vital, constitui sempre uma antecipação da perda última, o fim da vida. Na
foto, o corpo remete à vida humana vivida, aos tantos nascimentos de pessoas e
amores ao longo do tempo, agora perdidos com a morte. “Um barco cheio que virou”, diz a letra. E é difícil “olhar” esse
barco virar sem lamentá-lo. O autor combina bem a melodia triste da canção com
a sensação de desalento provocada pelo verso “tava perto, quase lá; quase pus meus pés na areia”. Para quem
escuta a palavra “quase” repetida chegam inevitavelmente sentimentos de
frustração e fracasso. Dos muitos sonhos sonhados, dos muitos desejos não
satisfeitos, ao se contemplar a imagem da morte, fica-se tão somente com um
“quase” desolador.
Mais um aspecto interessante da letra consiste na reverberação da palavra
“passa”, isolada ou na composição de palavras e expressões como “passaporte”,
“passa morte”. A ideia de “passagem” reporta ao próprio título da obra. Porto
consiste em local específico de parada e trânsito de embarcações em geral.
Cidades portuárias, como Lisboa e Salvador, exibem fluxo incessante diário de
barcos e pessoas, e a música, inclusive, se serve de muitos elementos destes
ambientes, em sua configuração poética, como areia, documento, carimbo, sol,
mar, pássaro, entre outros. Impossível evitar a analogia sonora entre as
palavras “porto” e “morto”. Mais do que uma simples semelhança de sons, talvez
os vocábulos guardem o mesmo sentido na canção: o morto como marca de toda uma
vida, com seus inúmeros passageiros, estórias fugazes e existências
transitórias.
A transitoriedade está presente também nos versos finais, juntamente,
agora, com uma certa noção de permanência: “todo
dia, todo dia, um novo dia vem raiou”. A sucessão de mortes e nascimentos,
a ideia de mudança, caracterizada aí na metáfora do ciclo solar, ganha uma
dimensão de destino e lei inexorável da existência. A mudança como única
realidade constante no tempo. E é então que se pode perceber mais uma nuance da
obra. O conceito de transitoriedade total e permanente se fazendo compreender,
também, no intercâmbio fluente de elementos verbais. “Olha a luz, é um globo só, um só mar, um sol, um ai, um dó; um verso
novo que rimou”. Uma coisa que é outra, que dá lugar a outra, que são todas
uma coisa só, fechando o sentido, ainda, com um recurso de metalinguagem: a
nota musical e o verso rimado inserindo-se neste mesmo fluxo infinito de vida e
de morte.
Porto é uma canção reflexiva sobre morte e mudança. Afinal, não há uma sem a
outra. Ambas se intercalam na composição e perpetuação do milagre a que
chamamos vida. Somos nós, pois, nada além de cães perdidos na eterna fronteira
entre o fim e o recomeço. Disso fala o autor ao cheirar seu corpo morto. Seja
em Lisboa, Salvador ou São José do Rio Preto.
(Falar da arte, como falar da vida, diz sempre muito
menos do que ela é).