quinta-feira, 18 de março de 2010

Balada de Gisberta



(Pedro Abrunhosa)

Perdi-me do nome,
Hoje podes chamar-me de tua,
Dancei em palácios,
Hoje danço na rua.
Vesti-me de sonhos,
Hoje visto as bermas da estrada,
De que serve voltar
Quando se volta p’ró nada.

Eu não sei se um Anjo me chama,
Eu não sei dos mil homens na cama
E o céu não pode esperar.
Eu não sei se a noite me leva,
Eu não ouço o meu grito na treva,
E o fim vem-me buscar.

Sambei na avenida,
No escuro fui porta-estandarte,
Apagaram-se as luzes,
É o futuro que parte.
Escrevi o desejo,
Corações que já esqueci,
Com sedas matei
E com ferros morri.

Eu não sei se um Anjo me chama,
Eu não sei dos mil homens na cama
E o céu não pode esperar.
Eu não sei se a noite me leva,
Eu não ouço o meu grito na treva,
E o fim vem-me buscar.

Trouxe pouco,
Levo menos,
E a distância até ao fundo é tão pequena,
No fundo, é tão pequena,
A queda.
E o amor é tão longe,
O amor é tão longe… (…)
E a dor é tão perto.

Gisberta é uma canção que fala sobre a morte. A morte, na hora exata em que ela ocorre, quando parece distante o amor e qualquer sentimento de consolo, sobrevindo a dor, física e emocional. Trata-se de uma obra de rara sensibilidade em que o autor se transporta à pele da personagem Gisberta, uma transexual brasileira, prostituta, morta a pauladas por 14 jovens em Portugal, tendo agonizado por 48 horas no fundo de um fosso até o seu último dia.

Mas ainda que não se soubesse da relação da música com fatos reais, certamente, à compreensão da letra, não restaria dúvidas de que se trata de uma canção referente à morte. O refrão constitui clara expressão de como o autor pôde compreender os minutos finais de Gisberta. Ela, em meio a lúcidos momentos reflexivos, experimenta, no refrão, uma espécie de “confusão mental” perfeitamente adequada ao estado afetivo em que, imaginamos, encontra-se alguém à beira do sumiço derradeiro. Percebe-se, na letra, alteração em diversas funções psíquicas provavelmente derivadas da angústia extrema produzida pela dor, pela incerteza da hora e pela sensação de abandono da personagem. Ela não sabe se um anjo a chama, não sabe se a noite a leva... fala de um grito surdo e traz ali os mil homens com quem esteve outrora na cama... tudo isso, diante de um fim praticamente imediato, traduzindo uma mistura de ideias, memórias, sensações, medo. Esse é o momento da não lucidez da morte de Gisberta, que alterna e contrasta com os outros instantes da música onde abstrações subjetivas, recordações e conclusões assumem um racionalismo maduro que, talvez, ocorram ao ser somente uma vez na vida, por ocasião de sua morte.

É justo o tom mais reflexivo quem canta o resto da canção. Nos primeiros versos, Gisberta discursa sobre a passagem para a morte, tomando para si o colorido da desilusão. Perde-se do nome (e da vaidade do nome), despe-se dos sonhos. Prefere a rua aos palácios onde antes dançara e não está em outro lugar a não ser nas “bermas” da estrada (no Brasil o termo “bermas” não é muito utilizado e siginifica os fossos laterais de umas estrada – local onde fora encontrado o corpo da personagem). Gisberta é pois, agora, do mundo, da realidade presente... não mais das ilusões e dos orgulhos que enfeitam os corpos vivos. Estes, Gisberta agora chama de “nada” quando questiona, no último verso da primeira estrofe: “De que vale voltar quando se volta pro nada?”. Talvez a indagação de Gisberta oculte, no fundo, certo despeito por não poder mais viver nem vivenciar as coisas próprias dos vivos, mas decerto este constitui o tipo de questionamento universal, próprio da hora de todas as mortes.
É possível, ainda, que com essa anulação de si mesma numa verdadeira “entrega” para o mundo, pouco antes de morrer, Gisberta antecipe, racionalmente, seu futuro imediato, consequência de toda a morte: dissolver-se no mundo, no real, como se fosse uma coisa só, afinal, seu “eu” esvair-se-á do espaço, sua carne diluir-se-á na terra e seus vapores miturar-se-ão ao ar. Eis o que se pode inferir (e viajar também) dos primeiros acordes da balada de Gisberta.

Na segunda estrofe da música, as recordações ganham espaço na letra. O samba e a avenida trazem a fantasia da porta-estandarte que evapora com o devir do futuro... nos últimos versos, impressionante é a criatividade da ironia de Gisberta: em meio aos devaneios da inscrição de seu desejo, ela “brinca” por ter matado com “sedas”, numa nítida referência às sedas dos lençóis na cama onde muitos homens esgotaram-se de prazer em seus braços, em contraposição aos ferros que causaram sua morte. Trocadilho de gênio, de quem conhece sua língua e a arte de transmitir ideias e emoções com as palavras.

Mas se já até esse ponto a obra emociona, é no final que o texto adquire seu teor mais precioso e melancólico. A reflexão última da música sintetiza, com força extrema, a mensagem de Gisberta. “No fundo é tão pequena, a queda”... A distância da vida, do nome e dos sonhos da personagem até o fundo do fosso, onde agora jaz o seu corpo morto, essa distância, para Gisberta, é pequena, sinalizando, para ela, a brevidade da vida, a futilidade dos esforços e a efemeridade das ilusões. É quando Gisberta, tomada pela dor dessa revelação somada a dor física da agressão sofrida, procura por qualquer sentimento consolador. Em vão. Gisberta conclui sua vida com a forte sensação de suas derradeiras premissas. “O amor é tão longe e a dor é tão perto”.

A tristeza dos acordes de “Balada de Gisberta” são, de fato, espelho da comoção pública perante um assassinato cuja causa provável consiste no preconceito. É, também, em última instância, a tristeza que identifica os seres humanos uns com os outros através de seu fim comum e de sua consciência específica de pensar a morte e o processo de morrer.

Foto de Gisberta: