quarta-feira, 27 de abril de 2022

A Chegada




A Chegada

Direção: Denis Villeneuve



Simples e direto, o título ‘A chegada’ já prenuncia uma atmosfera impactante. Algo chega. Nada mais será como foi. E o filme é um desfile de chegadas. De naves. Alienígenas. De pessoas. Do futuro. Ele trata do impacto e das reações a chegadas decisivas, como marcos de um antes e um depois. Chegadas de um grande desconhecido, que sendo desconhecido, provoca medo, pânico, desconfiança e curiosidade.

O desconhecido faz parte de nossas vidas, embora a rotina das coisas familiares procure sempre nos proteger de seu contato perturbador. Talvez a grande questão do filme seja como fazer contato com o desconhecido face a toda turbulência emocional que lhe é inerente. A coragem necessária provavelmente se liga à vontade imperiosa da curiosidade, mas vai além. Poder estar curioso e buscar as respostas desejadas constitui uma condição, uma possibilidade, pessoal. Uma pessoa que, ao longo de seu processo histórico, tenha sido capaz de construir essa condição de ver no desconhecido algo mais do que somente ameaças. Um algo pelo qual valha a pena ‘rasgar as roupas de proteção’, como faz Louise, e se aproximar das ameaças. Algo como uma possibilidade de satisfação e enriquecimento pessoal. Freud associava a curiosidade e sua satisfação à descarga da, por ele chamada, pulsão epistemofílica, uma derivada da pulsão sexual, exclusiva dos humanos. Wilfred Bion foi um analista contemporâneo que deu grande destaque a essa pulsão, ao considerar a busca pela verdade e pelo conhecimento uma das três formas de vinculação do sujeito com o mundo.

Acercar-se do desconhecido exige, pois, coragem para enfrentar os afetos turbulentos gerados. Mas exige também, como parte da condição pessoal, uma boa capacidade de tolerar ‘o que não se sabe’. Respostas apressadas para o desconhecido costumam ser uma forma tentadora de tentar eliminar as angústias relacionadas ao ‘não saber’. Por outro lado, como Louise teima em insistir, passar a conhecer o que não se conhece é um processo que demanda tempo. E habilidade. Uma habilidade adquirida no contato com uma série de desconhecidos, durante a vida. Seja na vida pessoal, nas relações com as pessoas, seja na vida profissional, com o aprendizado de técnicas específicas de aproximação e intervenção junto a determinados objetos. Toda essa bagagem confere instrumento ao sujeito para continuar descobrindo novas formas de encarar o desconhecido, o qual se vai, então, podendo traduzir numa linguagem conhecida. E assim, aos poucos, se fazer reconhecer.

Saber algo sobre o desconhecido já pressupõe ter havido transformações na qualidade dos afetos iniciais perante ele. No filme, o medo e a desconfiança do expectador vão arrefecendo na medida dos progressos de Louise. As representações mentais do desconhecido como uma ameaça se vão modificando em favor de uma realidade diferente, que agora se sabe. Inclusive é nítida a discrepância quanto aos avanços de Louise e Ian nessa matéria, quando comparados com outros personagens alienados do contato mais direto com a nave. Quanto mais se transformam os afetos, mais ainda do desconhecido se vai podendo experimentar e traduzir.

Mas não só a experiência do sujeito com o desconhecido é passível de transformação. Também o sujeito em si, ele mesmo, se vai modificando. As visões intrusivas e os sonhos de Louise aparecem como expressão das mudanças psíquicas que se vão processando nela. O expectador se surpreende com a revelação de que essas vivências são, na verdade, como, ‘previsões’, como ‘lembranças de um futuro’. Aí se apresenta a grande proposta reflexiva do filme: será possível que as transformações, a partir da aproximação com o desconhecido, tenham tal alcance a ponto de mudar a maneira como alguém experimenta a passagem do tempo?

‘A chegada’ é uma obra que acaba servindo de modelo para compreender fenômenos respectivos a outras áreas do conhecimento humano que tratam do desconhecido. A psicanálise seria uma delas. Freud, ao enunciar a importância do Inconsciente para o aparelho mental, apresenta ao homem a realidade de nele habitar um desconhecido, a dominá-lo e influenciá-lo em toda extensão de sua vida. A formação do psicanalista baseia-se, essencialmente, em construir uma condição de aproximação com esse desconhecido e com toda a turbulência emocional associada a ela. Para tanto, o analista em formação precisa fazer contato com o seu Inconsciente, no contexto árduo e doloroso de seu próprio tratamento analítico. Também as habilidades técnicas necessárias se vão adquirindo na formação teórica e na experiência prática de psicanalisar, sob supervisão com analistas mais experientes. Como mostra Louise, uma bagagem fundamental para favorecer conexões de outras pessoas com seus desconhecidos.

Sobre a questão da vivência do tempo, Freud também a abordou em sua relação com as neuroses. Estas seriam a expressão de um ‘passado presentificado’, de ‘um passado que não passou’ e, por isso, não pode ser lembrado. Nas neuroses, o sujeito fica condenado a repetir os mesmos papéis, as mesmas estórias, indefinidamente, sem possibilidade de futuro. Parte do desconhecido, cujo desvelamento a análise busca, está no passado esquecido que submete o sujeito, sem que ele tenha qualquer conhecimento a respeito. O analista, então, tem a tarefa de apresentar ao sujeito partes suas desconhecidas. Ao fazê-lo, oferece a ele um ‘novo conhecimento’, a partir do qual ele já não pode ser o mesmo: se transforma.

Claro, esse processo não se dá facilmente, haja vista – diga-se novamente – a turbulência emocional relativa à conexão com o desconhecido. No filme, a turbulência também se faz representar pela ‘quebra’ da rotina no mundo, as ‘batidas de carros’, o clima de insegurança e desorientação gerados. Toda transformação verdadeira pressupõe uma ‘desestruturação de mundo’. Uma ruptura com as coisas como eram conhecidas para dar lugar à configuração de novas estruturas. Abandonar o conforto e a segurança das coisas já sabidas produz sofrimento, mas é o único caminho de mudança. Uma boa análise visa tornar possível este caminho. Nesse sentido, transformar, configurar novas estruturas é ‘apontar para o futuro’. Ao dar conhecimento e consciência ao que restava esquecido e ao que não era sabido, o analista ajuda o sujeito a construir o futuro – esse grande desconhecido. Construir o futuro é a forma pela qual se vai podendo ‘saber’ dele. Novas formas de ser, de pensar. Algo bem distinto do engessamento neurótico referido.

Sobre outro tema caro ao filme, a linguagem, a psicanálise também tem a falar. É através da linguagem, com seus signos, que o sujeito constrói as narrativas sobre ele mesmo e sobre o mundo. E essas narrativas podem ser mais engessadas, como vimos, ou mais abertas às diversas possibilidades de sentido e significados, como é próprio das palavras. Outras formas de comunicação diferentes da língua – o xadrez, no exemplo dado por Louise – confere um número bem restrito de possibilidades de papéis aos interlocutores. Na construção das narrativas, é interessante observar como personagens diferentes apresentam entendimento diverso quanto ao signo ‘arma’. Para os militares, ‘arma’ representa quase invariavelmente uma ameaça. Para Louise, uma linguista acostumada com a polissemia e os equívocos da comunicação, outros sentidos possíveis demandam investigação.

‘A chegada’, no entanto, não trata somente do desconhecido representado nas naves e nos seres de outro planeta. O personagem Ian admite razão mais significativa para as transformações que viveu: ter conhecido Louise. O amor como a verdadeira revolução. Ele quem oferece a substância que conecta o sujeito a um outro, diferente e também desconhecido. A psicanálise, para além da pulsão epistemofílica, direciona o foco para os laços de afeto que ligam o sujeito ao seu analista. Freud cunhou o termo ‘transferência’ para descrever os fenômenos associados a esses afetos. Relacionou-os a nossa tendência neurótica de repetir um passado esquecido, desde nossas primeiras relações com as figuras parentais. Somente sentimentos poderosos, como o amor e o ódio, podem, em instância mais profunda, ajudar a explicar como alguém espontaneamente se coloca no caminho árduo e doloroso de um processo rumo ao desconhecido e suas revoluções.

E somente pelo amor se é possível compreender a escolha final de Louise. Ciente de seu futuro de dor e de perdas, ela ainda assim escolhe vivê-lo. A psicanálise, no seu intuito de tornar conhecido o desconhecido, a partir da relação com ‘um outro’ que o representa, busca dar ao sujeito a possibilidade da escolha. Nas desordens mentais, o sujeito vivencia o sintoma como um fenômeno independente, automático, no qual qualquer escolha consciente está excluída. O sintoma se impõe, invade e se repete, à revelia do sujeito. Com o conhecimento progressivo, produzido no processo, o sintoma vai se fazendo relacionar e compreender a partir das experiências do sujeito, de sua história. Aquele fenômeno estranho e automático, a princípio, vai ficando conhecido. O sujeito vai podendo ressignificá-lo: de independente e impostor a algo que tem a ver com o próprio sujeito, com sua escolha.

Para finalizar, cabe ainda uma breve reflexão sobre a questão do tempo e seus significados. Talvez o tempo constitua o maior dos mistérios da vida. Para o homem, ele é um grande outro, desconhecido. O fascínio e a curiosidade provocados pelo tempo já erigiram diversas concepções de tempo, ao longo da História. Aristóteles, Isaac Newton, Albert Einstein são exemplos de grandes pensadores, revolucionários da concepção do tempo, em suas épocas. A psicanálise se destaca ao refletir sobre como cada mente humana e como uma dada geração humana configura uma concepção de tempo, tal como ela aparece em suas vivências. Mas talvez também a ciência, com suas novas descobertas e teorizações, possa proporcionar à psicanálise outros instrumentos e modelos que aprofundem os conhecimentos sobre esse outro grande mistério que é a mente. Bion dizia que áreas da ciência, como a astronomia e a física quântica, seriam importantes interlocutores do futuro para a psicanálise. É a progressiva e inesgotável aproximação desse desconhecido tempo, produzindo novas transformações no mundo e na psicanálise. Preparemo-nos para elas.

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